01 junho 2011

Balada de um Homem Solitário (2)

Um episódio em um nascimento


Foi há vinte anos que ocorreu um trágico episódio, alguns meses depois do meu nascimento, assinalado pelo trágico desfecho da vida de um presidente da República. Esse presidente chamava-se Getúlio Dornelles Vargas. Chegara à chefia da nação na crista da única revolução vitoriosa da Velha República, a 24 de outubro de 1930. Duas vezes foi eleito presidente constitucional: em 1934 pela assembleia Nacional Constituinte; e em 1950 pela maioria do povo, em sufrágio direto. Por largo período, deteve em suas mãos o poder ditatorial. E envelheceu. Ou melhor, amadureceu no exílio em sua própria terra, na estância de Santos Reis, onde vivera a infância e se preparava para a nova, segunda e última presidência.

O mês de agosto não fora favorável a Vargas. O processo revolucionário brasileiro, que o trouxera na crista da onda, 24 anos atrás, novamente o elevara acima de todos, em uma evidência perigosa. A segunda presidência foi o período mais importante de seu longo domínio da política brasileira. A guerra fria, a bipolarização econômica e o toque dos dois imperialismo, russo e norte-americano, apresenta conotações importantes com o que aconteceu no Palácio do Catete, na manhã de agosto de 1954.

Desta vez, porém, será o fato, apenas o fato, em sua grandiosidade de tragédia grega para evidenciar que, em todas as fases da História, na sucessão das teorias e nos choques dos interesses, há um valor constante, um só, sem o qual os acontecimentos não teriam repercussão, efeitos, reflexos, consequências – o homem.

O Brasil vivia a grande crise. Uma campanha política estava contra o presidente, vários chefes militares reuniram-se para propor a renúncia do presidente, a licença ou o afastamento para uma viagem ao estrangeiro. Os jornais do dia estampavam vastos noticiários, cada qual defendendo sua posição política. O movimento conspiratório cresceu. E no dia seguinte, 24, desfechou-se a trágica notícia da morte de Getúlio. No dia 25, porém, comemorava-se o dia do soldado. Talvez houvesse uma trégua...

Nasci – em um ambiente onde a política do país era comentada em cochicho, nos corredores de casa – num pequeno bairro um pouco afastado do centro da cidade que era para mim feio e amado. Um bairro com mocambos, construções baratas e casarios barrocos, arrastando-se, estendendo-se sem planos. Via tudo de vários ângulos e sentia. Meus olhos não sossegavam, seguia o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. Olhava a rua sentado no batente de casa e via os moleques, os matões de aula e os velhinhos vestidos sempre às centenas os ternos de caridade em farrapos, zanzando numa vadiação sem fim.

Desviava rápido meus olhos para a paisagem ao lado, casas velhas, velhos telhados, verdes de limos, no geral encardidos e pequenas chaminés de manilha que deitava fumaça ridícula de tão insignificante no azul do céu.

Minha mãe era uma boa criatura, senhora de pouco cérebro e muito coração, caseira, bonita e modesta, temente às trovoadas e ao marido. O marido era na terra o seu deus. Dessas duas criaturas nasceu a minha educação. De perfil lembrava-me minha mãe e do gosto à política, meu pai.

Fui à escola aprender a ler, escrever e contar e, ao mesmo tempo, divertia-me. Nesse tempo os castigos eram tantos, as lições árduas e longas, e a palmatória...ah! aquilo era caso de tremer as pernas de tão pesado e doloroso. O terror dos anos. Nesse período de minha infância conheci Álvaro, menino inventivo e travesso, que gazeava a escola para caçar ninhos de pássaros ou perseguir lagartixas nos velhos muros dos sobrados, ou simplesmente peraltar pelas ruelas tortas.

Nas tardes quentes, ficávamos nos terrenos jogando bolinhas de gude. A garotada na expectativa de vitória, esperava com ansiedade o próximo lance que um dos adversários – um garotinho franzino – caprichava, medindo a distância, calculando a força. A bolinha atravessou, acompanhado pelos olhos de todos, várias outras passando rente, não acertando em nenhuma. Era a vez de Eduardo, o Dudu. Ele limpou as mãos, deu dois pulos e cuspiu três vezes com o seu estilo clássico de jogo, mas mesmo assim não acertou. Chegou a minha vez: atirei a bola que partiu veloz, mas por causa de uma pedra que desviou o curso da bolinha, não consegui acertar. Veio Álvaro fazendo um cálculo meio rápido, atirou a gude entre as demais e pou!. A bolinha acertou nas outras. A meninada explodiu de contentamento. Era assim nossas tardes, ora jogando bolinhas de gude, ora empinando papagaio. Vejo-lhe ainda agora entrar na sala, atrasado....

-- Atrasado, não é verdade Álvaro?

-- Sim, professora, desculpe-me. Creio que não foi por pilhéria, mas porque acordei tarde hoje.

Falava aquilo como se estivesse dialogando com um colega qualquer, o que seria difícil para mim, se estivesse em seu lugar.

-- Já que acordou tarde – prosseguiu a professora -, fará umas liçõezinhas de apenas umas 100 linhas para lembrar-se de que você deve acordar no horário certo.

-- Certo, professora. Certíssima... – e em voz baixa – será?

Alguns alunos tremiam, outros rosnavam, só Álvaro deixava-se estar quieto, com os olhos espetados no ar. Isso foi no primário. Lembro-me de quando me tornei seu amigo. No primeiro dia de aula, muitos garotos conversando temas diversos como se já fossem antigos colegas de sala. Eu, na terceira fileira, silencioso, ficava a olhar para frente. Todos sorriam, conversavam ou zombavam de tal garoto, mas logo vi que não era o único que estava silencioso. Outro menino, o escurinho Álvaro, na primeira fileira, estava de cabeça baixa. Eu o observava. De repente, ele levantou a cabeça e pregou fixos em mim os olhos negros e perturbado. Uma ou duas vezes os olhos dele se cruzaram com os meus. Após o término do primeiro dia de aula, todos partiram juntos. Eu atrás, já estava atravessando o pátio do recreio e Álvaro marchava ao meu lado, com a sacola atirada displicentemente às costas. No dia seguinte, na terça-feira, ele me esperou depois das aulas e, sem dizer palavras, apenas com um sorriso tímido, marcou o passo com o meu, enquanto descíamos a rua.

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