Insegurança, solidão, problemas familiares. Criado em um ambiente quase kafkiano, com pais que descontavam todas as frustrações em cima dele. O resultado não poderia ser outro: Cicatrizes é a autobiografia, em quadrinhos, do ilustrador americano de livros infantis David Small (Barba Negra, PB, 336 pgs.). Small narra passagens de sua infância e adolescência, revelando como a arte foi uma companhia e também uma salvação. Ele utiliza desenhos em preto e branco e, além dos quadrinhos com falas, cria grandes trechos narrativos executados sem diálogos. A força de suas aquarelas, os recursos gráficos utilizados e a sinceridade do autor nos comove. Ele parece estar desabafando conosco, e há sutileza em tudo quanto é detalhe.
O álbum foi elogiado por Robert Crumb, Jules Feiffer e Stan Lee e esteve no topo da lista de graphic novels mais vendidas do jornal New York Times e foi indicado para importantes prêmios, como o Harvey Award e o Eisner Awards 2010. Um filme mudo disfarçado de livro, como qualificou o editor Bob Weil, “Cicatrizes” transforma um mundo despedaçado repentinamente em algo unificado, conta uma história poderosa de superação e de grande carga emocional, utilizando imagens impactantes. Quando você começa a folhear as páginas, se surpreende peça força das imagens
O ano de 2010 tem sido muito bom para os quadrinhos nacionais. E este lançamento da Zarabatana Books é excepcional: Bando de Dois (formato 21 x 28 cm, 96 páginas em preto e branco), de Danilo Beyruth, é um dos trabalhos de quadrinhos contemplados em 2009 pelo ProAC - Programa de Ação Cultural, da Secretaria da Cultura do governo do estado de São Paulo. A trama prende o leitor do começo ao fim e o ritmo lembra os filmes de faroeste de Sergio Leone com planos amplos e cenas mudas. Mistura o estilo dos westerns italiano a paisagem do sertão nordestino e ao cangaço. Tudo ao mesmo tempo e agora. Um bangue bangue à brasileira.
Tem uma sequência de batalha sob as badaladas do sino da igreja bem cinematográfica. O roteiro é sobre dois últimos sobreviventes de um bando (Tinhoso e Caveira de Boi) que era composto por 20 cangaceiros. Eles partem em busca das cabeças decepadas de seus companheiros, preparados para enfrentar um exército. Cada um com seus motivos. Há um jogo de claro e escuro, traço detalhado, boa diagramação e a sequência final espetacular. Beyruth se destacou no mercado de quadrinhos nacionais com o fanzine Necronauta que, inclusive, ganhou um álbum pela HQM no final do ano passado. Bando de Dois é um álbum produzido com esmero e qualidade.
Poema em Quadrinhos
Nos anos 70 o nosso poeta e arquiteto Almandrade já produzia poemas em quadrinhos dentro do movimento do poema processo. E a tradição oswaldiana de imprimir humor à poesia em HQ passou pelas revistas Fradim e Mosca. Nos anos 80, Laerte brincou com o tema na revista Circo com a historieta “O Poeta e os Piratas do Tietê”, em que os bucaneiros tentam aniquilar Fernando Pessoa. Os versos encaixam-se às situações, enquanto Pessoa permanece vivo apesar das tentativas em contrário. Uma maneira suave de inserir versos numa sequência narrativa. Nos anos 90 o artista retoma a ideia e, suas tiras para jornais. (É bom lembrar que Little Nemo e Krazy Kat são pura poesia)
Agora chega ao mercado através da primorosa Cosac Naify o Poema em Quadrinhos do escritor e artista plástico italiano Dino Buzzati (1906-1972). Ele reconta o mito grego de Orfeu e Eurídice mesclando literatura experimental, imagens surrealistas, expressionistas e pop. Poemas em Quadrinhos é um fábula sobre a morte, que remete ao mito de Orfeu reinterpretando-o de uma maneira inesperada. A publicação do livro de 1969, ano em que o autor esteve no Brasil como jornalista, cobrindo a Bienal de Arte de São Paulo, foi recebida na Itália como uma busca nítida de Buzzati por uma linguagem que unisse suas duas paixões. Era, então, a primeira vez que um grande escritor usava os quadrinhos como meio para se exprimir. Nas 224 páginas o leitor encontra autorreferências e alusões a obras de arte e filmes de Salvador Dalí, Fellini, Achile Beltrame, entre outros. E nesse inventário ele vai do fantástico ao real, trivial, e do erótico e sádico ao ético, com versos ora livres, ora rimados como o seguinte trecho em que fala do amor, negado aos habitantes daquele lugar: "Quando começava a dormir, ela muito próxima / tornava-se uma estranha paisagem, suave, carnal, profunda, perecível, / flor./ Em ser flor, já o adeus./ Digo, o amor, secreto tirano do mundo lá de cima./ Querem ouvir/ outra vez?".
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