24 janeiro 2019

Território da alma humana (4)


A imagem gráfica foi um dos primeiros e mais presente elemento para o estabelecimento de diferentes formas de comunicação e registro narrativo da aventura humana. A pintura rupestre, presente até os nossos dias, é um exemplo das primeiras narrativas por sucessão de imagens (MOYA, 1970).



E em outro momento histórico, em que a comunicação já procedia de uma linguagem falada inteligível e codificada, o nascimento dos primeiros alfabetos reteve o caráter da imagem gráfica. Até os nossos dias, algumas culturas vivas preservam estas estruturas primordiais da escrita em alfabetos ideogramáticos, como é o caso da escrita do idioma chinês. A aproximação entre a escrita e a fala, contudo, foi essencial para a apropriação crescente da leitura como atividade cotidiana das populações, encaminhando sua democratização a constituir-se em um direito e patrimônio da humanidade.

 


A difusão das linguagens de matriz visual verbal continuou na Europa, nos séculos XVII e XVIII, como forma universal de comunicação impressa, o humor gráfico dá o próximo passo quando um imigrante italiano radicado no Brasil, Ângelo Agostini, lança a obra As Aventuras de Nhô Quim em 1869, considerada a primeira história em quadrinhos do mundo por certos especialistas (RIANI, 2002, p.38). No entanto, para efeito de internacionalização da linguagem, o primeiro registro mundial fica com Yellow Kid, história em quadrinhos de autoria de Richard Felton Outcault, lançada em 1895 (MOYA, 2003, p.95).



Consolidando-se como linguagem da mídia na imprensa norte-americana do século XIX, a história em quadrinhos concentrou-se em conteúdos humorísticos e esteve inicialmente voltada para o público menos letrado, abordando com comicidade as mazelas do operariado, dos núcleos familiares de classe média e baixa, contemplando também a possibilidade do protagonismo feminino, de minorias sociais e étnicas. A distribuição destas primeiras HQs, denominadas na época comic strips (chamadas no Brasil de “tiras”) foram levadas dos EUA para o mundo por meio dos syndicates, que são até hoje organizações distribuidoras de notícias e material de entretenimento para jornais do mundo.



Além de difundir o trabalho de seus artistas gráficos, a distribuição sindicalizada dos quadrinhos norte-americanos colaborou, juntamente com o cinema, para a internacionalização de diversos elementos da cultura e formas de produção de bens culturais nesse país. A ampliação dos parques gráficos norte-americanos, aliado ao aprimoramento da linguagem das HQs, fez com que estes obtivessem um veículo próprio, uma publicação periódica chamada comic book (conhecido no Brasil como gibi).



O efeito de despertar o gosto pela leitura não se perdeu para as histórias em quadrinhos, segundo os especialistas, mesmo quando outras mídias foram crescidas nas vivências domésticas e comunitárias das pessoas, como o rádio, a televisão, o cinema e, mais recentemente, as mídias digitais e o advento da Internet. Uma das características que resgata as histórias em quadrinhos como componente geracional, ou seja, traço inerente à geração atual, é determinado pelas propriedades hibridizadas de sua linguagem, devido aos elementos semânticos de sua matriz visual verbal. Assim, a geração de jovens que cresceram sob a égide da informática se identifica com a mídia quadrinhística, sentindo-se atraída também pelas possibilidades que cada leitor tem de criar suas próprias narrativas por meio desta linguagem.



Em seu estudo sobre culturas híbridas, Nestor Garcia Canclini abordou dois “gêneros impuros: grafites e quadrinhos”: “São práticas que desde seu nascimento abandonaram o conceito de coleção patrimonial. Lugares de intersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular, aproximam o artesanal da produção industrial e da circulação massiva” (CANCLINI, p. 337)



E mostra a sua aliança inovadora, desde o final do século XIX, entre a cultura icônica e a literária. Participam da arte e do jornalismo, são a “literatura” mais lida, o ramo da indústria editorial que produz maiores lucros: “Poderíamos lembrar que as histórias em quadrinhos, ao gerar novas ordens e técnicas narrativas, mediante a combinação original de tempo e imagens em um relato de quadros descontínuos. Contribuíram para mostrar a potencialidade visual da escrita e o dramatismo que pode ser condensado em imagens estáticas. Já se analisou como a fascinação de suas técnicas hibridizadoras levou Bourroughs, Cortazar e outros escritores cultos a empregar sua síntese de vários gêneros, sua ´linguagem heteróclita´ e a atração que suscita em públicos de várias classes, em todos os membros da família” (CANCLINI, p. 339).



Mais adiante Canclini informa: “Se a história em quadrinhos mistura gêneros artísticos prévios, se consegue que interajam personagens representativas da parte mais estável do mundo – o folclore – com figuras literárias e dos meios massivos, se os introduz em épocas diversas, não faz mais que reproduzir o real, ou, melhor, não faz senão reproduzir as teatralizações da publicidade que nos convencem a comprar aquilo de que não precisamos, as ´manifestações´ da religião, as ´procissões´ da política” (CANCLINI, p. 345).




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