A aparente quietude das HQs esconde a
dinamicidade e a riqueza expressiva que saltam de suas páginas coloridas e
transforma esse meio de comunicação impresso em um dos produtos culturais mais
ágeis dessa indústria do espírito. E essa indústria organiza a cultura de massa
para orientar o indivíduo durante o lazer, convertendo este mesmo lazer no
tecido da vida pessoal do indivíduo.
O divertimento, inoculado no cerne do
lazer, transforma-se ao maior atrativo dos meios de comunicação de massa. As
mesmas imagens e palavras, aparentemente inócuas, que encantam crianças e
divertem adultos, escondem por trás de suas cores e traços mensagens tremendamente
eficazes que nos fazem falar, escrever, amar, vestir e nos portar como os
nossos protagonistas preferidos das histórias em quadrinhos.
Protegido pela tinta e pelo papel, os
personagens das HQs materializam representações que são constantemente retomadas,
reatualizadas e normatizadas sob a forma de um simples exercício de leitura. E
desse jogo lúdico entre palavra e imagem (aparentemente desvinculado do mundo
real), retoma, recria e fundamenta modelos e saberes.
Assim, os quadrinhos convertem-se em possibilidades
de naturalização de valores, modelos e paradigmas que são decalcados na memória
coletiva sob a forma de representações, que são absorvidas como normas e
verdades. Sobre a produção dessas verdades, Michel Foucault é claro quando diz
que (...) vivemos em uma sociedade que em grande parte marcha “ao compasso da
verdade” – ou seja, que produz e faz circular discursos que funcionam como
verdade, que passam por tal e que detêm, por esse motivo, poderes específicos.
A produção de discursos “verdadeiros” (e que, além disso, mudam
incessantemente) é um dos problemas fundamentais do Ocidente. (FOUCAULT, 1979,
p. 231).
Os quadrinhos e demais produções do
imaginário reatualizam e revitalizam as narrativas místicas, matrizes de
paradigmas seculares, assumindo o lugar dos contos de fadas ou das antigas
epopeias heroicas. Esses produtos reintroduzem antigos heróis, seres
semidivinos, suas obras, dores, amores e ódios, assim como as ideias de bem e
mal em nosso cotidiano, instaurando modelos e criando funções.
Em 1924 Harold Gray começa a publicar sua
tira Little Orphan Annie, a pequena órfã conhecida por causa dos olhos redondos
desenhados sem pupilas, cabelos encaracolados, sempre protegida pelo milionário
da indústria bélica “Daddy” Warbucks. Annie vivia sempre acompanhada de um
cachorrinho chamado Sandy e representou talvez o máximo de conservadorismo que
as histórias em quadrinhos puderam um dia refletir. Sustentada por um magnata
da indústria de guerra que enfrentava greves mandando assassinar os seus cabeças
(Daddy Warbucks), a menina personificava o apoio à plutocracia como modelo
ideal de sociedade.
Nunca cresceu, permanecendo por mais de
cinquenta anos congelada no tempo, vagando pelas regiões inóspitas dos Estados
Unidos, sendo raptada por bandoleiros - normalmente ligados a etnias diversas
ou a classes pouco privilegiadas -, e esperando que seu papai retornasse de uma
de suas intermináveis viagens para salvá-la dos perigos, com os quais parecia
ter contrato de exclusividade. Talvez por personificar a mentalidade tacanha e
retrógrada que dominava (e domina ainda) boa parte da população de seu país,
foi um dos grandes sucessos dos quadrinhos, sendo desenhada por seu autor até a
morte deste, em 1968, e depois tendo sua continuação por outras mãos. Virou até
musical na Broadway e produção cinematográfica. A série provocou críticas
severas em sua época, teóricos da área são unânimes em suas afirmações:
“A órfã das pupilas sem luz, sempre
perseguida e sempre triunfante, é o pretexto para celebrar as pretensões, os
privilégios, os abusos de certa porção da sociedade americana: a necessidade de
ganhar muito, o gosto pelas obras de caridade, ou seja, o dinheiro, como fim e
como meio”. (BUONO, 2007, p. 7). “As histórias eram parábolas, contos
moralistas, cheios de alegorias caracterizações” (MOYA, 1993, p. 55)
“Gray, que sempre desenhou Aninha com
olhos brancos, foi acentuando na sua série suas convicções políticas de direita
extremada, colocando muitas vezes como ´vilões´ sindicalistas, grevistas ou
operários simpatizantes do comunismo (GOIDA, 1990, p. 25). “As tiras de Little
Orphan Annie são um exemplo da introdução da ideologia de direita nos comics:
paternalismo, glorificação do mundo patronal, etc”. (GUBERN , 1979, p. 90).
Apesar disso, Aninha, pela forma sentimental e esperançosa com que enfrentava
perigos e situações difíceis, conquistou leitores no mundo inteiro.
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