Absolutista na política, iluminista na
filosofia, no século XVII, a razão (quando investe na seriedade como condição
de credibilidade para os discursos sociais e as práticas que deles decorrem)
destitui o humor da ordem dos saberes, como portador de discurso cômico sem
razão, desprovido, portanto, de verdade. Exilado da cultura, banido da função
de expressar o sujeito, o humor recupera, agora no traço da charge, essa sua
antiga faculdade de produtor e portador da verdade.
Enquanto existirem o poder e o ser
humano, a charge persistirá, independentemente do regime político vigente, seja
a ditadura ou a democracia. Charge significa carga, bateria e só é possível na
periodicidade de um jornal diário e de um contexto político. A charge é uma
ferramenta que revela as fraquezas. Para o cartunista baiano Lage (1946-2006) nada
pode apagar o sorriso provocado pela exposição de um político ao ridículo
extremo. Tem o poder de catarse. Ele não acreditava nos políticos nem na
honestidade deles. Na dinâmica social, o povo é o grande inimigo da ditadura.
A charge é um desenho de humor que
estrutura sua linguagem como reflexão e crítica social. A proposta não é
registrar o real, mas significá-lo. Registra a história, a partir do que a história,
objetivamente, não registra. A charge, “essa libertinagem da imagem”, é um
instrumento universal de crítica e sátira política limitado pelas
especificidades culturais de cada país, ao contrário da caricatura e do cartum,
sempre iguais, independentemente de origem. Dos três gêneros gráficos que se
apropriam da realidade para expressá-la através do traço de humor, a charge é o
mais sofisticado, pois conta e resume histórias reais de modo e maneiras
convincentemente irreais.
O caráter de denúncia, revestido de
ironia e humor, sempre marcou os traços de Lage. Em sua trajetória na imprensa
baiana ele fez da pena o instrumento de crítica lúcida e afiada, traduzida na
melhor literatura.
A charge é um tipo de texto que atrai o
leitor, pois, enquanto imagem, é de rápida leitura, transmitindo múltiplas
informações de forma condensada. Além da facilidade de leitura, o texto
chárgico diferencia-se dos demais gêneros opinativos por fazer sua crítica
usando constantemente o humor. Mas a charge não está isolada dos demais textos
que aparecem no jornal. Ela contém a expressão de uma opinião sobre determinado
acontecimento importante com muita probabilidade de aparecerem outros textos do
jornal.
Os textos chárgicos transmitem
informações utilizando o sistema pictórico e verbal. A charge assim é um texto
visual humorístico que critica uma personagem, fato ou acontecimento político
específico. Por focalizar uma realidade específica, ela se prende mais ao
momento, tendo, portanto, uma limitação temporal.
Há charges compostas por um único quadro
e outras compostas por mais de um. Nas charges com mais de um quadro, os
primeiros funcionam como preparadores para o efeito humorístico ou
surpreendente que é colocado no último. O humor surge do traço, do gag, da
contraposição entre os códigos verbal e visual.
O humor é o principal fundamento de sua
narrativa, o instrumento singular de sua linguagem, uma vez que é através dele
que a charge transforma a noticia numa consciência sobre ele. Como charge se
designa, sobretudo, imagens, cujo sentido está além dos limites da razão.
Assim, a charge resume situações políticas que a sociedade vive como problemas,
e os re-cria com os recursos gráficos que lhe são próprios. Essa economia de
recursos que a caracteriza, isto é, o modo como sua linguagem se articula
produtivamente, aponta para a negação da razão como doadora exclusiva de
significado à realidade, e para a criticada linguagem textual como instrumento
privilegiado de seu sentido. E a charge produzindo uma verdade independente da realidade,
da razão. Ao incorporar o humor como linguagem produz uma verdade cujo sentido
esta fora da realidade e além da razão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário