19 março 2012

Personagens com identidade brasileira nos quadrinhos (1)

O caráter de denúncia, revestido de ironia e humor, marcou os primeiros escritos de argutos observadores. No princípio, era a sátira escrita. E Gregório de Matos, o Boca do Inferno inaugurou no século XVII os retratos verbais deformados das autoridades da época. Mas desde a colônia, a crítica jocosa, assumida pelo povo no teatro, nas festividades populares, eram representação figurada e viva da caricatura burlesca de nossos governantes e costumes. E a veia cômica do Brasil completou com a anedota – uma caricatura oral – sublimando suas mazelas. E dessa oralidade jocosa da colonia chegou-se ao desenho satírico do papel impresso que proliferou no Império, constituindo-se o traço caricaturado numa das linguagens de maior aceitação do país. Assim, a construção de “personagens tipo” sempre foi de rigor na produção satírica, alter ego dos criadores, porta-vozes contundentes de suas mensagens, figurações representativas de nações e épocas. Artistas do lápis e da pena procuraram desenhar personagens que traduzissem representantes de segmentos sociais expressivos do país.


Essa busca de uma identidade brasileira tem parada obrigatória na caricatura. Coube a ela fixar imagens que recolocaram valores e códigos de nosso processo histórico, documentos que falam por toda uma época, registrando, iconograficamente, personagens nacionais marcantes.


Na Semana Ilustrada (1860-1876) o desenhista Henrique Fleuiss criou Dr. Semana, branco, solteirão que, a despeito de criticar a escravidão, morava com seu escravo, o Moleque. Bem trajado, frequentador da corte e informado da vida social, indignava-se com todos os desacertos do país – exceção à figura do Imperador, seu protetor. Já o piemontês Angelo Agostini, em O Cabrião (1866-1867), também apresenta personagem similar: branco, possuidor de escravos, aparência cuidada, próximo à de pintor romântico com a tradicional jaqueta, mas, portando cômico chapéu.


Agostini publicou no dia 30 de janeiro de 1869, Nhô-Quim, ou Impressões de uma Viagem à Corte, considerada a primeira história em quadrinhos brasileira e uma das mais antigas do mundo. Nhô Quim foi uma das primeiras armas para atacar a aristocracia da época. Ele era um caipira rico e atrapalhado enviado à Corte pela família. As histórias do personagem não poupavam críticas aos problemas sociais do País e alfinetavam de comerciantes a artistas.


Nhô Quim era um anarquista por vocação. Desajustado da vida cortesã, metia-se em confusões com toda espécie de gente: comerciantes, imigrantes, artistas, prostitutas, políticos e autoridades. Ele perdia tudo pelo caminho (chapéu, trem, roupas) e quase foi passado para trás por dois encartolados vigaristas que lhe empurraram falsas ações bancárias. Agostini fez nove páginas duplas, interrompendo sua publicação em 08 de janeiro de 1870, sem concluir as peripécias em que Nhô Quim estava metido. Dois anos depois, Cândido Aragones de Faria desenhou outras cinco páginas, imitando o estilo de Agostini, mas também suspendeu seu trabalho, em outubro de 1872, deixando mais um episódio sem concluir.


Nhô, aferética de sinhô, era o tratamento que os escravos davam aos senhores brancos. Nessa série, Agostini destacou-se pelo uso de recursos metalinguísticos ou de enquadramento inovadores para a época. Entre cada um dos episódios da série, o autor introduziu como que uma espécie de gancho, que deixava pressupor a continuidade no número seguinte do jornal. Essa modalidade narrativa funcionava muito bem como estratégia de marketing e como elemento de manutenção de uma clientela cativa de leitores, como já haviam descoberto os autores de folhetim alguns séculos antes e como descobririam os syndicates norte-americanos vários anos depois.


A segunda personagem fixa, Caipora, praticamente mantém a mesma temática de Nhô Quim. Personagem que precede o Jeca, Pedro Malazartes, Macunaíma e outros famosos da galeria de ladinos brasileiros. Seu tipo físico é do caboclo de pés descalços, barriga proeminente e notável às situações mais escabrosas. As Aventuras de Caipora ganharam as páginas da Revista Ilustrada em 1883. Interrompidas várias vezes, 35 capítulos foram republicados na revista Don Quixote, outros tantos inéditos sairiam em O Malho, até 15 de dezembro de 1906, quando as peripécias de Caipora desapareceram para sempre.


Aventureiro, cômico e romântico, Caipora tornou-se popular rapidamente. Suas peripécias pelo interior do País e pelas florestas alimentavam a imaginação dos leitores. O traço fino e realista de Agostini dava vida a boiadeiros, onças, sucuris, macacos e índios. Além de inaugurar um estilo que inspirou quadrinhos das décadas seguintes, Ângelo Agostini criou cenas em dois planos, referência do teatro medieval, e também abriu caminho para a sensualidade, criado a primeira heroína dos quadrinhos: a índia Inaiá, protetora e guia de Zé Caipora, que, com os seios à mostra, representa o mito das amazonas.


Todo esse talento de Agostini, que José do Patrocínio considerava “o mais brasileiros dos brasileiros”, ficou relativamente esquecido a partir de 1910. Com o resgate e a publicação das histórias de Nhô Quim e Zé Caipora, a nova geração pode revê o pioneirismo do ilustrador Ângelo Agostini. É bom lembrar que a nossa primeira história em quadrinhos de longa duração foi homenageado em elo dos Correios. A data inicial de sua publicação, 30 de janeiro, é hoje comemorada como o Dia do Quadrinho Nacional, e Angelo Agostini passou a ser, a partir de 1984, o nome do troféu que representa o mais importante prêmio concebido pela Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo.

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