15 dezembro 2011

O que é que a música baiana tem? (3)

CONSUMO

A música de consumo, que chamamos de “digestiva” é produzida por uma industria para vir ao encontro de algumas tendências que esta individua (e cultiva) no mercado. Trata-se de uma música voltada para a satisfação de exigências, que por definição são banais, epidérmicas, imediatas, transitórias e vulgares. O mau habito musical está voltado exclusivamente para o comércio. Assim a música de consumo é um produto industrial que não tem nenhuma intenção artística, e sim à satisfação das demandas do mercado.


Quem está atento a música popular conhece os ótimos frutos (com textos de nível poético, melodias originais) desse movimento musical. Quando os “iletrados” tomaram o poder (ou seja adquiriram aparelhos que facilitaram a gravação de música) começaram a compor suas canções, mobilizando pessoas para escrever a letra e colocar o ritmo já saturado do mercado. Quando eles puseram em circulação os primeiros discos ou enfrentaram uma audiência de massa em algumas manifestações populares, conseguiram agradar aqueles que estavam sem nenhum recurso.


O fato é que hoje, passados dez ou doze anos, podemos apontar em nosso país um filão ativo de autores e cantores que fazem canções de modo diferente dos outros. E esse novo filão da música, partindo da sátira de costumes, da reexumação dos cantos da malandragem, chegou, por um lado a restituir ao grande público uma canção civil, encharcada de problemas, e a seu modo, de novos valores. E o que a juventude de hoje encontrou encarna seus problemas: as ânsias pelo amor não correspondido, o despeito pelo amor contrariado, a violência verbal entre outros atingiu os jovens de perto, e tornou-se o encontro fugaz enquanto o ritmo entranha pelo corpo.

A dança é uma ginástica coreografada com funções eróticas (mas ao mesmo tempo a recusa de um erotismo indiferenciado, a opção erótica reservada a um só, e portanto uma inequívoca declaração de moralidade, um diferenciar-se da genérica imoralidade dos adultos). Assim há um choque catártico provocado pelo intenso berro, qualidade técnica de um ditado canoro novo e apreciado como tal, evasão de um mundo construído pelos adultos graças à legalização, e a idealização e intensificação de um mundo ideal e sexual que correspondem a todas as expectativas do seu público. A canção é a padronização rítmica, repetitivos.


Essas canções não refletem a realidade, estiliza-a, contenta-se em pôr em cena autômatos. Por isso pode até intimidar jovens incapazes de igualar as performances “dançantes sexuais” daqueles atletas masculinos ou femininos. Tais performance está condenado à estratégia do exagero: é preciso surpreender o espectador. Os produtos, movidos exclusivamente pelo gosto do lucro, não recusa certas facilidades musicais (palavras chaves como na publicidade) para um efeito gerador de ansiedade.

O verdadeiro crime são a mediocridade e o fato de terminar sempre com as mesmas acrobacias sexuais, acrescidas de uma frase tão pedante quanto oca. O apetite das imagens eróticas pelos adolescentes (fenômeno presente em todas as épocas) é correlacionado a uma total ignorância das coisas do amor: erudição imensa acompanhada de desconhecimento crasso. A empolgação linguística calcada em obscenidades é típica dos virgens. Há precocidades lexicais que são crepúsculos libidinosos. Em certos meios, a regressão machista encorajada pela tradição coexiste com a pornografia, pelo menos é a língua que ela fala. É o caso da “ralé de subúrbio” e de sua misoginia agressiva misturando os bairros nobres, em que adolescentes chamam-se umas às outras de cachorras, vadias. A vulgaridade de certo léxico sexual, ao entrar na língua comum, termina se degastando e mergulhando no kitsch. Segue-se o marketing de provocação, e muitos sonham em ser proibidos para se beneficiar da auréola de maldito.


E o que se ouve é música para um público que deseja felicidade de escapar através da expressão à opressão, mas também à pobreza de espírito, ao estereótipo da perversão padronizada. Quanto mais a palavra se descontrai, mais ela empobrece, produz frieza e glaciação. Tudo se passa como se o sexo tivesse sido liberado pelo preço da extinção do desejo e nos leva da repressão à depressão. Assim se explica o fato de nossa época liberada ser também a que lota as prisões com delinquentes sexuais.



Ao tratar de música e de valor estético estamos em terreno movediço e variável. O que se considera música hoje não é o que se considerava no século XVIII. A avaliação estética e o porto musical variam conforme a época, o grupo social, a formação cultural, fazendo que diferentes pessoas apreciem de modo distinto as canções, romances, poesias e filmes. Muitos, entretanto, tomam algumas produções e algumas formas de lidar com elas como as únicas válidas. Há compositores excelentes e compositores medíocres, boas e más canções.


Julgar e hierarquizar um tipo de música empregando um único critério não é o mais correto, é preciso compreender cada obra dentro do sistema de valores em que foi criada. Não se trata de esquivar de qualquer forma de julgamento ou hierarquia, até porque os grupos culturais avaliam suas próprias produções e decidem que há algumas mais bem realizadas que outras. O que parece inadequado, entretanto, é avaliar todas as composições segundo os critérios pertinentes à criação erudita. Abandonando esta forma de agir, ficará claro que não há composições boas ou ruins para todos, pois nem todos compartilham dos mesmos critérios de avaliação.


É preciso garantir espaço para a diversidade de criações, que se garanta o espaço do outro. Com isso há o favorecimento do encontro com a alteridade (alteridade de temas, de modos de se expressar, de critérios de avaliação). Cada povo, ou cada grupo, tem um jeito próprio de fazer isso e uma maneira peculiar de apreciar essas produções. Alargar o conhecimento da própria cultura e o interesse pela cultura alheia pode ser um bom motivo para se ouvir música. Não há obras boas ou ruins em definitivo. O que há são escolhas – e o poder daqueles que as fazem. Música não é apenas uma questão de gosto: é uma questão política.

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