A maldição atingiu também o
cineasta baiano Glauber Rocha, que realizou uma verdadeira revolução formal no
cinema brasileiro e se indispôs, sobretudo a partir do movimento do Cinema
Novo, contra toda a estrutura conformista que impregnava nosso ambiente
cultural. Inquieto, polêmico, combativo, Glauber utilizou nessa luta as armas
com que fez seus filmes: agressividade, choque, ternura, imperfeição formal,
desprezo pelo convencional. Por sua participação nos principais debates
políticos e culturais do País recebeu o rótulo de maldito, mas também o
reconhecimento, por parte dos especialistas como o mais importante cineasta
brasileiro e um dos maiores da sua geração do mundo inteiro.
Há mais de cem anos o poeta
francês Paul Verlaine criou o rótulo ao lançar uma antologia de nomes que
lutavam contra a corrente parnasiana: Lês Poetes Maudits, que incluía versos de
Rimbaud, Mallarmé, Corbière e do próprio Verlaine, entre outros. Segundo o
professor, tradutor e poeta Haroldo de Campo, malditos eram aqueles autores
verdadeiramente criativos em oposição ao domínio dos parnasianos. A expressão
ganhou notoriedade e passou a designar o artista ou a obra que traz em si a
antecipação no futuro, que molda as novas direções da arte. O maldito pode
também continuar a sê-lo por muito tempo, ainda que sobre ele se acendam as
luzes de um tênue reconhecimento.
O cantor e compositor Jorge
Mautner, que misturou na sua trajetória política e cultura sempre foi
considerado um maldito com letra maiúscula. Divulgador do PK (Partido do Kaos),
inspirado no suporte que inclui a Numerologia, a Cabala, a Astrologia,
Telepatia, Empatia e toda e qualquer fenomenologia, a psicanálise freudiana e a
todos os dissidentes, Mautner retornou em 1986 ao panorama musical brasileiro
justamente se opondo ao rótulo que carregou por tanto tempo, com o lançamento
do disco Antimaldito. O tempo passou e ele continuou maldito.
A sociedade elimina os
diferentes, isso é ponto pacífico. E para que isto aconteça basta que se esteja
um momento em desacerto com as regras estabelecidas pela sociedade. Na maldição
incorrem aqueles que chocam a moral corrente, no Ocidente ou no Oriente, nos
regimes mais diversos, incorrendo na rejeição social que pode acobertar uma
grande obra. Uma referência aos malditos desconhecidos que a posteridade poderá
ou não resgatar. A exemplo de tantos que a seu tempo incomodaram e agora estão
nas escolas. O limbo não é necessariamente eterno, mas viver nele é árduo,
exige todas as forças de um ideal. O escritor Fernando Gabeira, por suas ideias
inconformistas, chegou a ser expulso do País, anos mais tarde é digerido com
aparente facilidade pela sociedade brasileira. Ainda maldito?
Se fosse o caso de citar os
brasileiros considerados malditos, teríamos ainda a dramaturga Leilah Assumpção
com seus textos fortes e marcadamente urbanos, refletindo a barra pesada de se
viver numa grande metrópole com todos os conflitos a que se tem direito. Não
menos inquietos e inconformados foram os dramaturgos Plínio Marcos (que
construiu um retrato fiel da falsa sociedade burguesa classe media brasileira)
e José Celso (este com a revolução instaurada através da montagem de O Rei da
Vela, de Oswald de Andrade). Não esquecer do poeta brasileiro que melhor
encarnou a contracultura, Torquato Neto.
Num ponto todos concordam: a
maldição é uma forma de discriminação, de separar o joio do trigo, como se em
arte as coisas fossem tão evidentes como o joio e o trigo, o negativo e o
positivo. E ser maldito já aparece agora como uma garantia de venda. Quando se
vêem malditos vendendo mais que os outros, é sinal que as coisas mudaram. Não
se sabe mais o que chamar de maldito, os limites ficaram indefinidos.
Do roqueiro Lou Reed ao cineasta
Godard, do escritor Gabeira ao dramaturgo Plínio Marcos, passando pelos
cantores Walter Franco e Sérgio Sampaio,
a maldição esteve presente nas suas obras, tornando-os mais inquietos do que já
eram naturalmente, pela incompreensão imputada pela sociedade massificadora e
pasteurizadora. Muitos já sofreram o estigma e outros ainda hoje são rotulados.
Em síntese, se hoje as estrelas badaladas pelos meios de comunicação são
castigadas pela rebeldia ao stablishment, a maldição antigamente não poupava os
gênios incompreendidos nas artes. Assim é que Baudelaire, Poe, Artaud, Fellini,
Mautner, Glauber e outros do mundo literário e artístico estão associados ao
conceito de maldição. O debate fica, por assim dizer, aberto.
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