A arte foi dessacralizada. A
contemplação deu lugar à participação. A palavra foi deformada em grito, o som
se fez ruído, a cor agrediu e o gesto atingiu o transe. O cinema acabou com a
conseqüência temporal, o teatro pôs fim à separação ortodoxa ator-espectador, a
dança entrou em convulsão, a música se dirigiu também aos olhos e a pintura se
apropriou dos objetos em vez de pintá-los. O frenesi, a estridência e o transe
dominaram os espetáculos. Rebelde e inconformada com a própria década, a arte
retirou desta o tom selvagem da violência com que escreveu, cantou e criou a
mitologia dos anos 60. Estava deflagrada, irreversivelmente, a maldição, que já
havia atingido os artistas do mundo inteiro tempos atrás.
Mas já vai longe a famosa década
de 60 e muita gente já pode falar dela para os filhos. Alguns já estão falando
dela para seus netos. Mas ela permanece uma área de referência muito forte,
graças à variedade de desejos políticos, não burocratizados, que mobilizou e
colocou em discussão. E
permaneceu ainda mais forte porque a década de 70 foi um período de refluxo e
rebordosas as mais variadas, tornando ainda mais sedutoras as possibilidades
desencadeadas na década de 60. E nada mais maldito do que a Geração Beat, que
teve seus anos de máxima potência entre, justamente, 55 e 60. Com as cabeças
feitas pelo ácido, saíam pela estrada figuras como Jack Kerouac, Allen
Ginsberg, Neal Cassady e outros tantos tidos como malditos.
É o maldito Allen Ginsberg, velho
admirador e conhecedor de artistas franceses (não menos malditos) como
Apollinaire, Rimbaud, Celine, Breton, quem vai fazer a ponte entre a geração
Beat americana e os movimentos europeus de contestação na década de 60. Essas
considerações todas nos levam à questão central da matéria: maldição. Por que,
desde a antiguidade, alguns artistas foram considerados malditos? Que conceitos
regem a classificação? Na realidade, maldição (do latim male e dictio)
refere-se, de certo modo, à má dicção, mau dito, mau feito. Enfim valores do
bem e do mal, do bom e do mau.
A maldição implica sempre estar à
margem da sociedade. Ser maldito em arte ou na vida, ou em ambas, é um fardo
que não se carrega voluntariamente, pois o criador, ainda que nem sempre
consiga, almeja a compreensão, quer estar ao lado do homem, quer subir junto
com ele. Maldito é um rótulo que não permite a indiferença e que revela o fato
artístico como elemento de inquietação e inconformismo, e quem o realiza como
agente confesso ou não da transgressão e da dessacralização. O maldito se
posiciona à margem da cultura dominante com seus valores estabelecidos,
parâmetro pelo qual se julga o novo. A maldição não é procurada, é simplesmente
vivida.
Foi vivendo a maldição que
Jean-Luc Godard, por exemplo, realizou Je Vous Salue Marie, onde trata de uma
forma totalmente inesperada, irônica e desmistificadora, figuras como a da
Virgem Mareia e de José. Ao longo de sua carreira, Godard foi um contestador
profissional dentro de sua arte, procurando derrubar os tabus. “O que eu quero
antes de tudo é destruir a idéia de cultura”, declarou certa vez.
A maldição é condição de quem
nela está, de quem não concorda com as regras artísticas ou sociais, ou ambas,
e deseja a sua mudança, contribuindo para subverte-la, antecipando o futuro e,
muitas vezes, preparando um paradoxo póstumo, o reconhecimento de sua obra pela
história, a imposição de um novo rótulo para atenuar a contundência de sua
ação: os clássicos Rimbaud, Van Gogh, Pasolini ou mesmo Glauber Rocha,
incompreendidos quando vivos, incensados quando mortos, itens importantes no
quadro da indústria cultural que tem na arte dita maldita um potencial
mercadológico constante.
O fato que mais ressalta na vida
e nas obras desses autores malditos é que eles transgrediram os preceitos
morais dominantes em suas épocas. Van Gogh só vendeu um quadro em vida e
terminou suicidando-se de desespero. Ernest Hemingway, ao sentir-se incapaz de
criar, teve o mesmo fim. Baudelaire, além de ir parar nas barras dos tribunais
acusado de imoralismo em seu livro, era um excêntrico na maneira de se
comportar em público.
Enfim , esses homens hoje considerados geniais sofreram na
vida as mais diversas privações. Assim sofreu também o dramaturgo Jean Genet,
com sua força poética, violência, erotismo criminoso e fantasia desvairada.
Quem viu o filme “Querelle”, de Fassbinder a partir da história de Genet, pode
comprovar a maldição desse francês irreverente.
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