A personagem da série (Memín), criada pela escritora Yolanda Vargas Dulché ao comemorar a tradição nacional de quadrinhos com uma coleção de selos desencadeou reações negativas do governo Busch ao declarar que “os estereótipos raciais não devem existir no mundo moderno”.
“O governo mexicano, por sua vez, teimou em defender a medida. O porta-voz da embaixada asteca em Washington, Rafael Laveaga, destacou o fato de que no México não se fazia uma leitura racial de personagens como Speedy González, que, mediante a sagaz estratégia de explicitar a exceção, mostravam os mexicanos como sonolentos e preguiçosos. Carlos Caballero, do Sepomex, defendeu a inclusão de Memín, dada a sua suposta encarnação de valores louváveis”, escreveu Hector, continuando mais adiante:
“O presente texto se propõe a analisar esse episódio como valioso exemplo dos efeitos nocivos do etnocentrismo em matéria de percepção cultural. O etnocentrismo, ou predisposição, em geral inconsciente, a julgar a nossa cultura de maneira superior, tende a enquadrar a nossa percepção do próprio e do alheio dentro do marco de matrizes culturais legitimadoras dos nossos inventários históricos, sociais e econômicos de índole nacional. Dessa maneira, impossibilita-se a apreciação da diferença – em geral o elemento imprescindível na organização de qualquer cultura – segundo pautas alheias em sociedades vizinhas. Em outras palavras, dado que nos habituamos à diferença de acordo com o nosso paradigma – assimilado mediante o correspondente exercício identitário nacional – nos desacostumamos a perceber como se constrói a diferença em outras latitudes e desperdiçamos as oportunidades de enriquecimento mútuo”.
Ainda segundo Hector Fernandes, “o episódio de Memín Pinguín, apoiado em percepções de raça – os norte-americanos tachando os mexicanos de racistas – e classe – os mexicanos se queixando do paternalismo do vizinho rico e poderoso -, diz quase o mesmo de ambos os países: nenhum dos dois se esforça por praticar a autocrítica e entender como esse incidente desvela aspectos significativos e exploráveis de ambas as sociedades”.
O articulista conta a origem do personagem publicado em um diário de novela gráficas (Pepín) que “alimentou os ânimos de leitura de milhões de mexicanos recém-alfabetizados e urbanizados em meados do século 20”. Assim as travessuras de Memín e seus amigos enaltecem e glorificam a mestiçagem, comum na localidade. “Portanto, o imaginário mexicano tende a se sustentar em interesses da classe preponderante, a classe média, o que não equivale a dizer que não se contemplam delimitações raciais. A ordem de raça existe no México, só que encoberta sob uma forte preocupação social”.
“Nos EUA – continua Hector - , ao contrário, a ordem é quase exatamente a oposta. O que prevalece é a raça e o que se interioriza é a classe. Boa parte da população carece de consciência de classe, mas reafirma de maneira constante o seu entendimento de raça. Para o capitalismo, a diferença de classe é matéria problemática, pois tende a fomentar uma consciência de exploração. Daí vem o fato de se promover a ilusão constante de se fazer parte de uma grande classe média. Os ricos, como disse Fitzgerald, são diferentes, vivem em outros lugares, e o seu estilo de vida, apesar do afã publicitário dos meios de comunicação, é bastante inacessível. A pobreza, ao contrário, se converte no bastião dos párias, daqueles que não souberam se acomodar nem aproveitar as oportunidades do sistema: eis aqui uma desculpa muito boa para atenuar responsabilidades coletivas. A raça, por sua vez, se converte no prisma segundo o qual se vê e se entende não só o que lhes é próprio, como também boa parte do que é alheio, da infinita alteridade possibilitadora da renovada construção identitária norte americana”.
Como analisa o estudioso, os negros dos EUA viram os selos de Memín e entenderam a imagem que lhes remeteu a aromas de melancia (fruta que ostenta conotações raciais negativas nos EUA), interpretados segundo matrizes identitárias apreendidas depois de um amadurecimento na sociedade americana com as usuais conotações pejorativas entre os seus semelhantes. Segundo ele, os norte americanos não se detiveram para pensar o que poderia significar essa personagem no contexto da indústria cultural de outra nacionalidade, de acordo com outras condições de produção assalariada. E foi incisivo:
“As negritudes norte-americanas estão tão convencidas dos seus papéis de alteridade, dos seus papéis de vítimas, que não se colocam a possibilidade de se conceberem no papel de opressoras hegemônicas, no papel dos que têm a vergonha – ou o descaramento, segundo se queira admitir – de opor os seus valores aos de outras nações. A hegemonia, por dizê-lo de maneira sucinta, não só se fundamentam em alteridades periféricas, alheias. Há também alteridades próprias, internas. Ditas alteridades – nesse caso, as negritudes americanas – sempre correm o risco de servirem de cúmplices, tácitas ou conscientes, da prática hegemônica”.
O texto analisa ainda a Revolução Mexicana que glorificava o passado indígena e idealizava a mestiçagem, promulgando o mito da democracia racial. Para ele, o México é, aos olhos dos EUA, uma nação na qual prevalece o antepassado indígena, com os estereótipos consequentes. Para os mexicanos, ao contrário, todos os norte-americanos, incluindo os negros que em ocasiões tiram férias nas rivieras astecas, são capital andante, acostumado a violentar os interesses da nacionalidade mexicana. E conclui que o fato de uma história em quadrinhos permitir que aforem e se evidenciem essas diferenças culturais demonstra bem o quanto as HQs são um meio de comunicação eficaz.
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