29 novembro 2011

As representações femininas no pagode baiano da década de 90 (1)

RESUMO

O propósito deste trabalho é mostrar as representações femininas no pagode baiano da década de 90 (usualmente uma construção masculina). O tratamento diferenciado entre homem e mulher – presente em todas as sociedades humanas – tem suas raízes plantadas na própria história da humanidade, e tais raízes resistem bravamente à ação do tempo. Os traços de caráter do homem e da mulher estão constituídos desde o nascimento e são definitivos. Em decorrência de tal determinismo, o lugar e o desempenho de ambos no curso da história têm obedecido a uma rígida divisão social. Assim, a história da humanidade tem sido a história de personagens masculinos, sejam eles guerreiros, sacerdotes, heróis ou artistas. E aqui cabe a indagação: a quem interessava o ocultamento da trajetória da mulher? O pagode, ritmo que caiu no gosto popular a partir da década de 90, reforça a ideologia paternalista, colocando a mulher em segundo plano.

Palavras-Chave: Mulher. Pagode. Estereótipo



1. DOMÍNIO INTELECTAL DO MACHO


A influência da tradição sempre foi reforçada e, em certa medida, continua sendo até hoje pela religião, instituição de marcado caráter conservador. Com o passar do tempo a mulher transformou-se, ela mesma, num agente de reprodução do sistema, cooptada pela ideologia paternalista, que tem como premissa a legitimidade da autoridade masculina sobre o conjunto da sociedade. Tudo que nos chegou sobre o papel da mulher no mundo greco-romano diz respeito à exclusão, à subordinação, à submissão. Privilegiou-se o homem. A mulher foi afastada do corpo filosófico, literário, religioso. O domínio intelectual passou a ser exclusividade do macho. O desprestígio do feminino levou o homem a rebaixar o amor heterossexual a simples nível de reprodução e a enaltecer o amor homossexual. A pederastia foi um exercício comum entre os antigos gregos. O homem maduro e viril se aproximava dos efebos que, acabados de deixar a puberdade, mantinham ainda um aspecto pouco definido da virilidade. O autoritarismo com o qual a Igreja defendia suas crenças como as únicas verdadeiras, encontrou eco no sexo da religião do Pai e do Filho. Excluindo a Mãe do panteão divino, erguiam uma Igreja masculina, em que somente os homens exerciam as funções de padres e bispos, investidos pelos apóstolos que receberam de Cristo o direito de divulgar a Boa Notícia.


Foram necessários quase dois séculos para que essa lógica se transformasse em normas sociais e conferisse a tal igualdade de condições entre os sexos. Foi necessário uma longa marcha que se realizou em várias etapas, na qual as mulheres foram progressivamente ganhando terreno no espaço social. Com efeito, do direito de votar ao de poderem ser educadas, passando a ter acesso aos espaços sociais da masculinidade, o percurso das mulheres foi marcado por um longo combate de muitas idas e vindas, progressões e retrocesso. Os anos 60 do século XX foram o momento crucial dessa ruptura, quando o feminismo rompeu de vez as amarras tradicionais da condição da mulher no Ocidente.

Negar a paixão às mulheres: esse foi um eficiente modelo político que se estabeleceu para a organização social do Brasil Colônia. A estratégia imposta pela Igreja em aliança com o Estado, pela dominação do corpo social, usando a mulher ao mesmo tempo como agente e inimigo, é mostrada na obra da historiadora Mary Del Priore, “Ao Sul do Corpo”. Ela mostra que, da obrigação de se portar como católica e não se desonestar publicamente, a mulher foi – num processo que se iniciou no século XVII, atravessou o século XVIII e se fechou no XIX – empurrada para o conceito de sexo como pecado, aturável apenas dentro do “santo matrimônio” e com fim único de concepção. E a Igreja tinha à disposição argumentos da medicina. Como registra a autora, “a medicina aliou-se à Igreja na luta pela constituição de famílias sacramentadas, e o médico, tal como o padre, tinha acesso à intimidade das populações femininas. Enquanto o segundo cuidava das almas, o ‘doutor’ ocupava-se dos corpos, sobretudo no momento de partos dificultosos e doenças graves. Ao penetrar o mundo fechado de pudores, mistérios e usos tradicionais dessa espécie de terra desconhecida que era o corpo feminino, o médico interrogava a sexualidade da mulher e era também por ela interrogado”.

A historiadora Ana Paula Vosne Martins em seu livro “Visões do Feminino – a medicina da mulher nos séculos XIX e XX” (Editora Fiocruz) mostra como o estudo do corpo feminino pelo saber médico colaborou para o aprisionamento da mulher ao determinar seu papel na sociedade pelas características corporais, reprodutivas e sexuais. Para ela, a mulher do século XXI continua prisioneira do corpo, submetendo-se a intervenções médicas como plásticas e silicones, seguindo à risca as cartilhas da saúde e da beleza. Trata-se de uma versão mais moderna de controle da autonomia feminina.


Ao estudar a produção cultural masculina sobre o feminino no século XIX e começo do século XX, Ana Paula percebeu o quanto a diferença feminina constituía um problema para aqueles homens cultos. Primeiro, o mistério – criaturas misteriosas despertam fascínio, mas também medo. Esta cura de mistério, criada pelo desejo de conhecer e de possuir ao mesmo tempo, é um dos elementos fundamentais para se entender a imagem ambígua da mulher que oscila entre mãe nutridora e amorosa e a mulher fatal. Essa ambigüidade não se restringe às páginas dos livros e jornais ou obras artísticas, mas extravasa para a vida social, participando de uma construção social que inferioriza e as exclui as mulheres, pois as imagens da normalidade e da anormalidade são como o positivo e o negativo de uma fotografia. Adorada ou temida, enaltecida ou execrada, a mulher permanecia o outro, por excelência, da cultura ocidental.

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