22 novembro 2011

Inquietações de um artista: Laerte (2)

No álbum Muchacha, Laerte apresenta os bastidores surreais do programa centrado no herói espadachim Capitão Tigre. Com o cancelamento da atração, o ator principal, Lairo, passa a confundir realidade com ficção, tornando Muchacha um thriller pastiche que envolve alucinações, romances, viajantes do futuro, cartomantes, além, é claro, do travestismo. Em meio a isso tudo, ainda somos apresentados ao programa de animação do Morcego Frederico, visto pelo olhar distorcido (e político) do próprio Lairo. “Essa parte é uma história voltada para alucinação. Eu queria deixar o leitor com dúvidas, deixar aberturas e portas abertas para ele transitar”, afirma o quadrinista.


Um dos principais traços das produções recentes de Laerte é a sugestão implícita de aspectos da sua vida nas obras. Um exemplo é a série O santo recalcitante, publicada na Folha e republicada no blog do autor, o Manual do Minotauro (www.verbeat.org/blogs/manualdominotauro/). As tirinhas traziam Latércio, um homem santificado contra sua vontade e que busca revogar a nomeação, e os leitores imediatamente a viram como uma resposta do quadrinista aos elogios grandiloquentes de jornalistas e colegas. Laerte, enquanto assume a coincidência entre o personagem e ele, nega essa visão. “Chamar o personagem de São Latércio foi uma liberdade que me dei. Não acho que eu sou santo, claro, mas se bem que o personagem também não acha. Mas a tira não é sobre mim, não. E sobre isso de ser chamado de Deus ou gênio, o engraçado é que os que me chamam de Deus são todos ateus. Um bando de pagãos!”, brinca.

Afastado dos personagens fixos e da fórmula humorística das tirinhas de humor, Laerte faz de inquietações políticas, artísticas, culturais e pessoais o combustível para suas produções. Com a criação do blog Manual do Minotauro, Laerte passou a ser alvo de elogios. O site serviu apenas para ampliar a visibilidade e dar uma visão geral da mudança que havia começado já em 2004 e foi intensificada em 2005, com a morte do seu filho Diogo, aos 22 anos, em um acidente de carro. Nesse tempo, Laerte deixou de lado os personagens que o consagraram, como Piratas do Tietê, Gato e Gata, Overman e Deus, e passou a construir suas tiras diárias na Folha fora da obrigação humorística, buscando levar ao limite as possibilidades do espaço. “Eu já não busco provocar uma risada. Acho que é possível, sim, rir com as minhas tiras, mas elas não são de humor. São espécies de contos”, indica. Não é o seu interesse, portanto, simplesmente superar a crise, mas se manter questionando as próprias fórmulas e premissas do seu trabalho. A atitude, ainda no começo do processo, levou dois jornais que o republicavam a cancelarem as tiras.

O artista recebeu mais destaque, principalmente fora de veículos especializados em quadrinhos quando começou a se vestir de mulher. A primeira aparição foi em março, na TV Uol, com unhas vermelhas e brinco, mas com pouca repercussão. Em agosto, Laerte foi entrevistado no programa Lobotomia, do cantor Lobão, também com acessórios femininos e já em maior evidência. Mas só em setembro, na Bravo!, ele se revelou de fato como adepto do crossdressing – prática de usar roupas ou acessórios vinculados ao sexo oposto – e deu as primeiras declarações sobre o assunto. A partir daí, diversas matérias se dedicaram a falar do Laerte vestido de mulher, incluindo abordagens que se dedicavam, por exemplo, apenas a tratar sobre o guarda-roupa de peças femininas do cartunista.


Antes de tudo, é difícil ver nesse discurso crossdresser de Laerte um simples impulso de provocar uma polêmica, de chocar. Confortável com as roupas – tem aparecido sempre “montado”, termo que usa para se referir ao ato de se travestir – e com as palavras, o quadrinista é ao mesmo tempo incisivo e didático ao tratar da questão. É ambíguo, tratando não como uma defesa finalizada, um processo concluído, mas uma exposição da dúvida, da dubiedade, da liberdade que é, para ele, o próprio objetivo do crossdressing.

Portanto, travestir-se não é uma forma de expor uma mulher que está dentro do corpo de um homem; a sua motivação não tem nada a ver com a sexualidade. É um questionamento, como são as suas obras, de valores e estéticas preestabelecidos. “A repressão faz parte da nossa cultura. Por si só, o fato de existirem duas formas de se vestir para que se escolha é um sinal disso. Você só pode ser homem ou mulher”, explica.


Assim, a busca do crossdresser é a de romper esses limites. “Eu quero conquistar esse espaço. As mulheres já o conquistaram há muito tempo, usam roupas de homens sem problemas. Para mim, essa fronteira não tem que existir”. O travestismo de Laerte é, então, uma problemática de gênero, é a busca de se comunicar artisticamente a partir do que ele chama de “linguagem do vestuário”. “Existem tantos gêneros quanto existem pessoas”, diz ele, citando a frase da amiga Letícia Lanz, autora do blog Arquivos de uma crossdresser. O questionamento dessa linguagem, no entanto, não gerou grandes mudanças no quadrinista. “Continuo a mesma pessoa, ou quase a mesma”, afirma.

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