6. PROTESTO DE UMA MANIFESTAÇÃO COLETIVA
Para comemorar os 450 anos de fundação da cidade de Salvador, em 1999, o espaço urbano do município se tornou suporte para a expressão de dezenas de artistas plásticos. E nesse espaço proliferaram pinturas, mosaicos e algumas obras tridimensionais que passaram a conviver com as esculturas e murais feitos por encomenda de órgãos oficiais ou da iniciativa privada. A “street art” voltou a virar febre em soteropolis e marcou sua presença em termos de presente. Seja nos grafites da turma ainda anônima ligada ao movimento hip hop, nos mosaicos com cacos de azulejo de Bel Borba, ou nas sequências de pinturas realizadas em grupo, capitaneadas por Leonel Mattos, as novas imagens estavam nos muros, encostas, contenções de concreto, tapumes de madeirite e outros espaços da cidade-suporte.
A atitude dos artistas que decidiram povoar muros e trechos de encostas de Salvador com imagens, cores, símbolos e até frases possuía algo de revolucionário que remonta aos momentos da arte do século XX. Muralistas e grafiteiros decidiram reverenciar a cidade executando uma arte cujo propósito viajava em dois sentidos: um ideológico, quando não revolucionário, que se expressa numa forma de protesto, usando um recurso estético contra a feiura e os vários tipos de deformidade que invadem a rua, e tornando-a veículo apropriado à manifestação coletiva. O outro, de lavra poética, em que a ação militante dos artistas operava no desejo de ocultar o feio, surpreender e divertir através de uma intervenção imaginativa sobre uma fachada, um muro ou outro qualquer suporte, no que lhes parece uma oportunidade de lançar uma nota insólita sobre a face da cidade, a seus olhos e sentimentos hoje submetidas aos ditames de uma funcionabilidade banal e exposta à degradação. Uma arte que se dirigia à coletividade, opondo-se àquela dos museus e galerias de arte, em clara fuga ao circuito do mercado e, através disto, das paredes das casas burguesas, já que seu objetivo não é agradar pessoas, afagar-lhes a vaidade e contribuir para o aumento do patrimônio delas, mas conseguir que muitos (a coletividade) possam perceber a obra de arte, seus signos, forma e sentido, no espaço urbano, ou até nas estradas – enfim, uma arte ao alcance de todos. Inspira-os e justifica suas intenções o aspecto desolador e estéril da arquitetura e das soluções urbanísticas que o processo de desenvolvimento urbano alimentou nas décadas de 70 e 80.
As figuras de Bel Borba, a partir de composições com cacos de azulejo, a maioria concentrada no bairro do Rio Vermelho, foram estopim da onda dos anos 90. Começou em 1976 um painel por encomenda de uma loja de surf wear (Sun&Surf) no Rio Vermelho. O trabalho foi bem visto e bastante comentado. O desdobramento foi um pinel realizado na curva da Paciência, no mesmo bairro. Artistas como Hans Peter, Guache, Zivé Giudie e Mazzo se juntaram a Borba para implantar o padrão do muro dividido em lotes para que abrigasse o trabalho de mais de um artista. Os anos 80 foram férteis em murais e intervenções urbanas.
Movimentaram essa praia de imagens artistas como Bob, que espalhou figuras inspiradas nos quadrinhos pelos muros do Rio Vermelho, e Miguel Cordeiro, com seu Faustino e outros personagens, além de cartunistas como Nildão que criava imagens e textos nos muros do mesmo bairro e em outros cantos da cidade. Em 1987, Borba, Otávio Filho e Paulo Kalil fizeram uma intervenção, a título de protesto, nos escombros de um prédio demolido, no Corsário. Também naquele ano, Bel “soltou” uma imensa cobra em aço inoxidável numa encosta que dá acesso ao bairro de Brotas.
E no final dos anos 90, Salvador ganhou obras a céu aberto. Bel Borba fez um grande painel na Avenida Contorno empregando mais uma vez a técnica de mosaico. Na Avenida Garibaldi outros artistas coloriram 400 metros de muro. Outro grupo pintou na Boca do Rio um imenso muro próximo à sede de praia do Esporte Clube Bahia onde foi inserido poemas e artes plásticas.
Onze grafiteiros baianos exibem (18/09 a 18/10 de 2009) na Galeria Solar Ferrão (Pelourinho) seus trabalhos na mostra “Muros”. Com artistas de diversas gerações e estilos esta mostra traz um panorama do que vem sendo realizado nas ruas de Salvador desde a década de 90. Para acompanhar as intervenções, o Ministeriopublico (equipe de som especializada em reggae, dub, etc) se apresentou na abertura do evento. A mostra é promovida pela Diretoria de Museus do Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia.
A singularidade do grafite reside no fato de que seu consumidor é todo transeunte no trajeto do seu espaço visual. Assim, a cidade tornou-se um ateliê, o “habitat” de um incessante tráfico de signos. Todos nós existimos em meio ao conjunto desses objetos e signos que nos cercam e nos povoam, mantendo sempre, consciente ou inconscientemente, um diálogo com eles. A expressão desse diálogo já constitui, por si mesma, um ato criador independente de avaliações críticas que a rotulem ou não como arte.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMANDRADE. A Cultura e o Planejamento da Cidade. Digestivo Cultural.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
BRITO, Reynivaldo. Miguel é pai de Faustino. Salvador: A Tarde. Caderno 2, 09 de abril de 1984, pág.01.
CRUZ, Gutemberg. Miguel Cordeiro: o criador de “Faustino” expõe sua identidade. Salvador: Correio da Bahia. Cultura, 28 de março de 1984, pág.01.
FRANCISCO, Luiz. Salvador transforma pichadores em grafiteiros-servidores. São Paulo: Folha de S.Paulo. 31 de outubro de 2005.
FREITAS, Jolivaldo. Da praça para os muros o ideal libertário da poesia. Salvador. A Tarde, Cultura, 17 de agosto de 1979, pág. 01
GITAHY, Celso. O que é grafite. São Paulo: Brasiliense, 1999.
LIMA, Tatiana. Arte na alma da rua. Salvador. A Tarde Cultural. 27 de março de 1999, págs 06 e 07.
MARIA, Cássia. A vanguarda da pichação. Salvador. Tribuna da Bahia. Cultura, 20 de outubro de 1988, pág. 01.
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