10 fevereiro 2011

Na falta de cidadania, a busca do sagrado na guerra dos caceiteiros

Dois acontecimentos históricos marcantes na história do município de Casa Nova são o movimento fanático religioso de Pau-de-Colher, em 1938, e a mudança, em 1976, da localização da cidade devido à construção da barragem de Sobradinho. O movimento de Pau-de-Colher, localidade do município, guarda várias semelhanças com o de Canudos, tendo terminado, assim como este, com a intervenção de tropas estaduais e federais e a morte de centenas dos fanáticos participantes. Foi assunto de mais de um livro, sendo o último “Pau-de-Colher – Um pequeno Canudos – Conotações políticas e ideológicas”, do casanovense Raimundo Estrela, publicado em 1997 pela Assembleia Legislativa do Estado da Bahia.


O lago formado com a barragem de Sobradinho cobriu as cidades originais de Casa Nova, Pilão Arcado, Remanso e Sento Sé. A mudança das cidades e das populações ribeirinhas por causa da barragem inspirou músicas (“Sobradinho”, de Sá e Guarabira), literatura de cordel e trabalhos que circularam no meio acadêmico. Mas, em plena década de 70, época do “Brasil grande” do governo militar, só se falou sobre os benefícios da gigantesca obra, ficando o grande público carente de uma visão menos parcial sobre o assunto.

Com a discussão da transposição do rio São Francisco, o tema passou a despertar novo interesse. Um exemplo foi a publicação, em 2005, do livro “Os Descaminhos do São Francisco”, de Marco Antônio Tavares Coelho, em que o autor faz um histórico da utilização do rio. Entre muitas informações fornecidas, Coelho afirma que a opção pelo local da construção da barragem desconsiderou parecer técnico da consultoria especializada contratada à época. Esta afirmava ser possível, sem prejuízo da geração de energia, escolher um local alternativo para a construção, de modo que a formação do lago não implicasse a submersão das sedes dos municípios.


GUERRA NO SERTÃO

Pau de Colher era um pequeno povoado em Casa Nova. Ali, famílias oligárquicas disputavam votos e a relação de poder com o governo central, num confronto mortal que assolava, também, a população mais pobre. Foi então que surgiu um pregador, o beato Severino Tavares, ou Conselheiro Severino. Ele dizia que o "fim do mundo" estava próximo, e que os camponeses iriam ver a terra tremer e gemer. Essa ideia apocalíptica era a forma de ele retomar a fortalecer os costumes religiosos. O líder foi morto em 1937 e, logo depois de seu falecimento, surgiu o Conselheiro Quinzeiro.

Os camponeses passaram a viajar atrás de Quinzeiro e acampar à sua volta; o quartel-general do grupo se estabeleceu na casa de Senhorinho, em tal povoado. Foram mortos a cacetadas os que não respeitavam as regras. Nessa tensão, muita gente queria deixar Pau de Colher ou radicalizava em sua missão apocalíptica-salvacionista. As autoridades estavam decididas a acabar com o reduto rebelde com medo que acontecesse um novo Canudos. Quinzeiro começava a falar em salvação através da morte. Foi quando as tropas militares começaram a atacar, e tiveram o troco dos "caceteiros", porque os camponeses portavam cacetes (bastão ou pedaço de madeira). O ataque deixou 400 mortos só no primeiro dia. Reza a lenda que Quinzeiro conseguiu escapar vestido de mulher.


50 ANOS DEPOIS

Tudo ocorreu cerca de cinquenta anos depois do episódio do Arraial de Canudos, quando o beato cearense Antônio Conselheiro insurgiu-se contra a hierarquia católica e o autoritarismo da república então nascente, culminando com o massacre dos conselheiristas; e pouco tempo depois de outro massacre, o do Caldeirão da Santa Cruz, no Cariri, comunidade místico-religiosa liderada por outro beato, o Zé Lourenço. Eis que na confluência do Estado da Bahia com o Piauí, na localidade denominada Pau de Colher, no termo de Casa Nova, — originalmente São José do Riacho da Casa Nova — mais um cearense é o protagonista inicial de uma saga de insurreição e misticismo


O rezador de apelido Quinzeiro soube da existência de algumas grandes fazendas no interior do Piauí, na citada área limítrofe com o Estado da Bahia. Tratava-se de três propriedades que pertenciam a Antônio Martins (Barra), Mariano Rodrigues de Sousa (Cágados) e Alexandre Oliveira (Caldeirão). Quem conta a história é o pesquisador Marcos Oliveira Damasceno, bisneto de Alexandre. Vale salientar que o interesse de Quinzeiro era econômico, posto que o Piauí era o maior exportador de gado vacum para o município de Rio Branco, atual Arcoverde, em Pernambuco. Por razões estratégicas a localidade de Pau de Colher foi a escolhida para a empreitada. Ali o rezador fez logo amizade com moradores do lugar. No início da construção do arraial os poucos moradores locais ajudaram na construção das casas de moradia, bem como de outras edificações. Iniciaram-se as rezas e procissões que tinham o condão de irmanar cada vez mais aquela população. Segundo alguns estudiosos do movimento, logo aqueles rígidos costumes adotados e os rituais e manifestações de religiosidade popular descambariam para o fanatismo.


O movimento ganhou muitos adeptos, alcançando uma dimensão que levou as autoridades a ficarem preocupadas, pois além do apelo religioso tinha claramente um apelo social. Tal chamamento foi ouvido além Casa Nova indo repercutir até no município piauiense de São Raimundo Nonato. Os que não aceitaram pertencer à irmandade do rezador, transformaram-se em colaboradores da polícia quando o arraial de Pau de Colher foi atacado. A denominação “caceteiros” se deu em razão de que os militantes do movimento destinados a fazer o trabalho de proselitismo se apresentavam armados de cacetes, pedaços de pau. Armados de cacete é que eles enfrentaram as forças policiais e voluntários a serviço do Estado. No início da reação, claro. Posteriormente muniram-se com as armas de fogo conquistadas ao inimigo no campo de batalha.


Os caceteiros começaram a ameaçar a integridade de quem quer que se opusesse a seus desideratos e, segundo entenderam as autoridades locais na época, a ordem pública estava ameaçada. A esta altura, as notícias dando conta dos conflitos no arraial do Pau de Colher já havia chegado ao conhecimento do presidente Getúlio Vargas por intermédio do bispo Dom Inocêncio, de Juazeiro da Bahia. Atendendo aos apelos das autoridades da região, o presidente Vargas, no final de janeiro de 1938, autorizou o envio de contingente policial proveniente de Pernambuco.


Pau de colher constitui, uma das guerras populares mais trágicas do interior do Nordeste. Porém, são necessárias mais aprofundadas pesquisas para que se aclare algumas lacunas que ainda persistem na história até aqui registrada. As representações que os mesmos faziam do lugar Pau de Colher compreendiam uma visão naturalista-religiosa alimentada pela busca do que lhes faltava para sobreviver, da vida minguada, da busca da presença da água, do pasto, dos alimentos, do criatório, através das práticas de um catolicismo rural que, em torno das promessas, penitências, canto dos benditos, rezas, iriam obter.

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