Memória das Águas (Roberto Mendes e Jorge Portugal)
Amores são águas doces
Paixões são águas salgadas
Queria que a vida fosse
Essas águas misturadas
Eu que já fui afluente
Das águas da fantasia
Hoje molho mansamente
As margens da poesia
Cachoeira da Vitória
Timbó das pedras de seixo
Vocês são minha memória
Correm em mim desde o começo
Quando o Subaé subia
Beijando o Sergimirim
Um amor de águas limpas
Nascia dentro de mim
E foi assim pela vida
Navegando em tantas águas
Que mesmo as minhas feridas
Viraram ondas ou vagas
Hoje eu lembro dos meus rios
Em mim mesma mergulhada
Águas que movem moinhos
Nunca são águas passadas
Eu sou memória das águas
Eu sou memória das águas.
Mapa (Murilo Mendes)
Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado.
Estou limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido.
Depois chego à consciência da terra.
Ando como os outros,
Me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem,
vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos no ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
Tonto de vidas, de cheiro, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com meus antepassados,
Saio às ruas combatendo personagens imaginários,
Estou com meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou do outro lado do mundo,
daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso
estar presente em todos os atos da vida.
O mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.
Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários,
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor,
outras caras aparecerão na Terra.
O vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.
Almas desesperadas eu vos amo.
Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida,
os homens “práticos”...
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
e os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, viva eu,
que inauguro no mundo um estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor.
Não me inscrevo em nenhuma teoria.
Estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto na praia do Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre,
sempre em transformação.
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