15 agosto 2022

Monstro que dorme em cada quadrinho: estereótipo (1)

 

Jornais e revistas anteriores a 1800 tiveram vida precária, limitados pelos altos custos das assinaturas e pelos métodos primitivos de produção e distribuição. Tudo isso mudou dramaticamente após a década de 1870. Entre invenções e aperfeiçoamentos, o telégrafo, a máquina de escrever, o elevador de passageiros, e a luz elétrica mudaram o trabalho e a vida de muitos. Anúncios apareciam nas revistas. Os jornais publicavam edições dominicais. Letreiros, pôsteres e cartazes apelavam ao público em ônibus, paredes, cercas e laterais de celeiros. Laboratórios farmacêuticos distribuíam milhões de almanaques ilustrados. Em poucas palavras, abundavam os impressos e periódicos ilustrados, de anedotários, anúncios, livretos musicais e cartões de namorados a postais e cartões comerciais, muitos dos quais com caricaturas e desenhos satíricos humorísticos que descreviam figuras simbólicas como o Tio Sam e a Srta. Liberdade, burros e elefantes e personagens raciais, étnicas e de imigrantes.

 


A parada etno imigrante era liderada por Sambo, Paddy e Bridget, negros com máscaras de melancia e cômicos e irascíveis irlandeses, homens e mulheres. Hans, o holandês ou alemão seca cerveja, o trançado João Chinês e o gesticulante judeu Abie, e outros estereótipos de imigrantes e representativos das personagens profissionais e regionais não estavam distantes.

 

O imigrante enfrentou obstáculos difíceis para a assimilação e consequente progresso ao nível da classe média. A língua estranha, novos costumes e frequente má acolhida foram alguns desses obstáculos, além da barreira da cor. Judeus, morávios, húngaros, brancos sulistas, negros, porto riquenhos, mexicanos ou cubanos deixaram suas casas ao ver as promessas de uma condição econômica social mais avançada. Mas a vida desses imigrantes nos Estados Unidos está repleta de frustrações múltiplas e sutis.

 

Católicos irlandeses e alemães foram vítimas de sátiras gráficas mais antigas. Depois, os imigrantes da Europa Ocidental e Oriental eram representados como alienígenas, ou seja, mais ameaçadores aos valores e padrões americanos do que os católicos. As caricaturas gráficas dos irlandeses no popular semanário humorístico americano da era dourada (cerca de 1870/1890), Puck (1876/1918) se destacavam, além de outros alvos da sátira e humor que incluíam maçonaria, voto feminino, divórcio, inflação, socialismo, anarquismo, alimentos adulterados e sacerdotes anti evolucionistas.

 

Paddy e Bridget (um operário e uma doméstica), irlandeses de baixa classe social, eram o produto principal das piadas e charges irlandesas de Puck. Seus tipos eram ignorante e trabalhadores de serviço pesado, dados a bebidas e excessos emocionais, simpatizantes de briga ou pequenos furtos. Paddy era caracterizado como um tipo humorístico, emocionalmente instável, ignorante, sujo, supersticioso, infantil, violento e vingativo, “uma invenção da velha imaginação vitoriana” (Anglo-Saxon and Celts, New York, NY, 1968, p.52). Naquela época era natural e altamente sensível ao potencial negativo e até destrutivo do estereótipo étnico.

 

Para John e Selma Appel, “o estereótipo foi uma leve reminiscência das lutas por vezes dolorosas dos irlandês-americanos em busca de trabalho e estabilidade, e de sua presença em massa nas ocupações de menor qualificação profissional, operárias ou domésticas” (APPEL, John e Selma. Comics. Da imigração na América. SP, Ed. Perspectiva, 1994, p.90). “Durante a era ourada e por algum tempo depois, caricaturas de negros, judeus, holandeses e irlandeses eram lugar-comum na imprensa e no palco. O estereotipo étnico se expressava num dialeto cômico e prontamente reconhecido, era grosseiro, ébrio ou imbecil” (APPEL, op.cit.,p.91).

 

Essas imagens eram apresentadas em romances, no palco, em semanários cômicos e, como apontou o professor Oscar Handlin, caricaturas do homem real. Uma das funções da caricatura era “enquadrar os indivíduos em grupos distintos”. (Race and Nationality in American Life, Garden City, NY, 1957, p.72). E essa sempre foi a função do estereotipo.

 


No fim do século XIX e início do século XX estereotipo étnicos e raciais estavam altamente visíveis na imprensa, majoritariamente cômicos e satíricos (alguns claramente escabrosos), tornaram-se lugares-comuns na música, no palco e nos periódicos em expansão num Estados Unidos carregado de tensões sociais e preconceitos raciais, étnicos e religiosos. Havia uma versão romantizada da América como o paraíso de milhões de imigrantes, e da Srta. Liberdade e do Tio Sam entronizados como as personificações dos ideais americanos em toda espécie de material impresso na época. Essa iconografia sancionou as máculas etnorraciais que chocam o observador moderno.

 

Após a década de 1920, a América fechou suas portas com base nas descriminatórias e racialmente inspiradas leis de quotas de imigração. A contribuição das imagens desses imigrantes formaram as tendências anti-semitas na sociedade americana. É bom lembrar que os estereótipos etnorraciais americanos são complexos, e nem sempre podem ser reduzidas a simples noções de preconceito, carência social, deficiência de personalidade ou xenofobia. Alguns estereótipos se originaram do choque dos valores culturais, os temores e inseguranças dos americanos natos. (Texto publicado em 2011)

 

Nenhum comentário: