18 março 2016

Território da alma humana (8)



Mas, ao contrário dos grandes mitos emanados das velhas religiões de culturas antigas, o públicoleitor sabia perfeitamente que seus admirados personagens eram fictícios, produto da tinta-da-china em cima do papel e não reais. Porém, tal condição fabulosa não impediu, nem impede, a adesão solidária e, inclusive, a veneração fervorosa de público a seu herói favorito. Este fenômeno psicológico, que leva a atribuir uma personalidade quase real a um personagem desenhado, apesar de sua condição fictícia, reveste um enorme interesse social e se baseia nos mecanismos de identificação e da projeção doeudo leitor sobre os personagens da narrativa.

De Joyce a Picasso, passando por Felline, Resnais e tantos outros prestaram atenção nos quadrinhos porque neles viu uma reação autenticamente imaginativa contra as formas oficiais. Esse é um elemento capital e valorativo no debate que hoje permanece aberto e vivo acerca das funções e valores da cultura de massas. Conforme escreve o crítico e estudioso Francis Lacassin: “Que as tiras desenhadas cultivem o fabuloso, o irreal e o impossível, me parece conforme à sua vocação natural: serem o luar da realidade”. (LACASSIN, apud GUBERN, 1979, p.23).
           
No Primeiro Salão Internacional de HQ, na cidade italiana de Bordighera (1965), a estudiosa ÉvelyneSullerot questionou: “Será que nos encontraremos perante um fenômeno de subcultura, cuja vocação não permitirá ultrapassar esta fase? Ou, pelo contrário, não consistirá o fenômeno uma reserva natural de matérias, temas e processos, para uma futura cultura artística a que eu chamaria simplesmente uma antecâmara da cultura?” (SULLEROT, apud MARNY, 1979, p.275).


Para apoiar esta tese, a autora evidencia o fato de muitos movimentos literários, artísticos e musicais que apareceram como novidade se inspirarem bastante nas manifestações mais vulgares da subcultura da época, então bastante popular. O romantismo foi precedido pelo gosto popular pelos melodramas e romances de cordel; o surrealismo nasceu graças, entre outras coisas, a um olhar atento dos objetos banais e o burlesco popular; a música moderna recebeu uma nova inspiração do jazz, a pop art começou a nascer das histórias em quadrinhos.

Os atributos de classificação entre popular e erudito alteram-se, inúmeras vezes, no decorrer do tempo. As qualificações para cada uma delas não necessariamente se mantêm. Shakespeare, por exemplo, foi concebido, em sua época, como autor popular. Rabelais, considerado por Mikhail Bakhtin (1987, p.2) – ao lado de Dante, Boccaccio, Shakespeare e Cervantesum dos criadores da nova literatura europeia, foi recusado pelo seu caráter popular e pelo aspecto não literário de sua obra. Hoje, todos são tidos como representantes inequívocos da literatura consagrada (BORELLI, 1996, p. 25).

O valor de uma obra de arte reside, em parte, na capacidade que ela possui de criar personagenssólidos, heróis e heroínas que se transformem emtipos”, em símbolos representativos de certa época, ou então em cristalização de uma paixão da alma humana. E os quadrinhos, ao longo de sua trajetória, criou uma galeria detiposuniversais, tanto no campo da aventura realista, como no da ficção científica, e sobretudo, no domínio do humor. A imprensa, o cinema, a HQ e os folhetins de televisão são os reservatórios da mitologia da sociedade atual. Num mundo onde a realidade encontra-se exposta, sem limites, em tempo real, por meio das mídias digitais, a HQ é uma dos únicos meios de expressões que recupera o sonho.


Uma vez que o elemento onírico está se perdendo da concepção dos bens culturais, num mundo onde as características realistas da informação e da comunicação são cada vez mais reforçadas, em detrimento do direito de sonhar, inerente ao ser humano. E até os efeitos especiais, que foram voltados para a criação de ilusões e fantasias, atualmente recriam hiper-realidades, onde o efeito imagético e sonoro equivale aos eventos e leis naturais, mesmo nos territórios ficcionais mais fantásticos. É no conteúdo da linguagem das HQs que o elemento afetivo demonstra a força da fantasia no despertar da imaginação e do gosto pela leitura infantil, que prossegue ao longo de toda a vida. 


Referências:

BORELLI, Silvia Helena Simões. Ação, suspense, emoção. Literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo: EDUC; Estação Liberdade, 1996.

CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp. 1997.

EISNER, Will. Narrativas Gráficas. 2ª ed. São Paulo: Devir, 2008.

FRANCO, Edgar Silveira. HQTrônicas: do suporte papel à rede Internet. São Paulo: Annablube; Fapesp, 2004.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

GOIDA. Enciclopédia dos quadrinhos. Porto Alegre: L&PM, 1990.

GUBERN, Román. Literatura da Imagem. Rio de Janeiro, Salvat, 1979.

GUYOT, Didier Quella. A história em quadrinhos. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

MOYA, Álvaro de. Shazam! São Paulo: Perspectiva, 1970.

MOYA, Álvaro de. História das histórias em quadrinhos, 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

MOYA, Álvaro de. Vapt-Vupt. São Paulo: Clemente e Gramani Editora, 2003.

ORTIZ Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994

RAMOS, J.M.O. Televisão, publicidade e cultura de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.

RIANI, Camilo. Linguagem e cartum... ta rindo de que? Um mergulho nos salões de humor de Piracicaba. Piracicaba: UNIMEP, 2002.

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