06 junho 2012

Quadrinhos da vida real (08)


DRAMA HUMANO NA VISÃO DE SATRAPI

Persépolis é uma história em quadrinhos tocante. Retrata a chegada de um regime tirano do ponto de vista de uma menina, a iraniana Marjane Satrapi, quando jovem. Narra o fato do lado de dentro, valorizando o drama humano de quem viveu injustiças, perdeu os direitos humanos básicos e pôs em dúvida todos os valores. Ela era apenas uma criança quando a revolução islâmica derrubou o xá do Irã, em 1979. Bisneta do antigo rei da Pérsia, Marjane cresceu em uma família de esquerda, moderna e ocidentalizada, e estudou numa escola francesa e laica. Com a chegada dos extremistas ao poder, as meninas foram obrigadas a usar o véu na escola e estudar em classes separadas dos meninos.

A trama (lançada inicialmente no Brasil em quatro volumes e depois em uma única edição de 352 páginas pela Cia das Letras) se desenvolve com tanta graça, inteligência e charme que o leitor esquece dos aspectos extraordinários de sua execução. E Marjane cresce em uma família de intelectuais que sofrem primeiro sob a ditadura, depois, sob a vitória dos revolucionários islâmicos. Essa história política, que inclui guerra, tortura e assassinato, é passada nos quadrinhos com inteligência.

Satrapi era filha única de uma família bem posicionada economicamente e teve uma educação que favorecia as ideias liberais. O dinheiro e a postura liberal e rebelde da família propiciaram uma perspectiva diferente para a menina. Em Persépolis, é com essa perspectiva que ela conta suas memórias, narrando muitas situações interessantes. Ao mesmo tempo em que o regime islâmico oprime e impõe severas regras de comportamento, as pessoas reagem em passeatas e, em um segundo momento, adaptam-se. Adotam uma postura pública, comedida, e de acordo com as exigências do governo, mas dentro de suas casas fazem festas (que eram proibidas), enfrentam-se, bebem, escutam músicas estrangeiras.

Conta a força da intolerância e da superstição, onde a menina segue os passos da sua avó e assume uma postura combativa. Para ela, a liberdade é um direito, por isso, desafia o mundo. Temendo por sua segurança durante o período de guerra e repressão, os pais de Marjane a mandam para a Áustria, e a alienação que ela experimenta lá é o contraponto da ansiedade vivida em Teerã. Lá na Áustria, ela se perde nos prazeres do punk rock e da cultura alternativa, mas se decepciona quando encara o niilismo europeu. Mas é em Viena que seu problema se torna claro, um dilema que não é só seu. Ou ela vive longe de casa com um pouco de liberdade, ou volta para casa mas deve abrir mão de sua individualidade.

Há momentos terríveis como o da mãe de Marjore que saíra sozinha de carro e, quando o automóvel quebrou, foi interpelada por vários homens que ameaçara violentá-la por ela não estar usando o véu (burka). Os especialistas na televisão afirmavam que os cabelos das mulheres emitiam energias que excitavam os homens, de forma que eles não eram responsáveis caso decidissem executar o estupro. Assim as mulheres que passaram a usar burka, mesmo forçada, eram chamadas de guardiãs da revolução, e muitas vigiavam as mulheres que usavam incorretamente o véu, ou que se vestiam com roupas consideradas inapropriadas. E o clima de terror piorava a cada dia. Quando começou a faltar adultos na guerra (onde morreram um milhão de soldados iranianos), o exército passou a recrutar crianças de 14 anos. Nas escolas eles davam aos meninos chaves de plástico, com as quais poderiam abrir as portas do paraíso, cheio de mulheres e comida, caso morressem na guerra. Um relato comovente de como o fanatismo religioso é nocivo e irracional.

Persépolis foi uma antiga capital do Império Persa. A partir de 522 antes de Cristo foi a capital do Império Aqueménida, que na Antiguidade dominou a região do Oriente Médio. Acidade de Persépolis localizava-se no atual Irã, e foi a capital religiosa dos Aqueménida. Em 1931 foram encontradas ruínas de um enorme palácio. Devido a esta descoberta Persépolis passou a ser um importante sítio arqueológico do Império Persa (destruída pelo Exército de\Alexandre, o Grande, durante o extermínio do império persa). Persépolis foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1979.

A literatura gráfico visual de Satrapi é de uma simplicidade poética comovente. O traço em preto-e-branco lembra a xilogravura dos cordéis nordestinos com grossas linhas negras. A obra ganhou o importante prêmio do salão de Angoulême, na França, e em 2004 recebeu o prêmio de melhor HQ da Feira de Frankfurt. A série teve os direitos de publicação vendidos para vários países. Depois dos quadrinhos, a obra de Marjane Satrapi chegou aos cinemas. Premiada em Cannes, Vancouver, Filipinas, Inglaterra e na Mostra de São Paulo, e ainda concorreu ao Oscar de melhor filme de animação.

Vale a pena conferir a obra em quadrinhos e no cinema. A história sobre a valorização da família, a necessidade de buscar uma vida melhor em outro país é realmente emocionante. E o encantamento e ousadia da resistência artística aos poderosos e opressores que insistem que o mundo só pode ser visto em preto e branco foi admirado em diversos países. Belo trabalho.

Embroideries (Bordados) é sua sequência de Persépolis, a surpreendente e original memória em dois volumes que contou sua infância no Irã e a experiência da revolução islâmica de 1979. Seus desenhos são contidos e altamente estilizados e consegue nuanças de expressão com traços simples e rápidos. Em Bordados, abandona os paineis convencionais de um livro de quadrinhos por uma disposição mais livre das ilustrações nas páginas. As histórias são contadas com humor e mostram um lado da vida no Irã praticamente desconhecido pelos estrangeiros.

Já o jornalista Anthony Lappé que estava no Iraque em 2003 e escrevia sobre a guerra para seu blog (anthony.gnm.tv), enquanto filmava um documentário e, a partir de uma experiência no fronte, criou os quadrinhos Shooting War – publicados toda semana no site da Smith (smitmag.us/shootingwar), uma revista online. Com ilustrações de Dan Goldman, a série conta com a trilha sonora de DJ Spook, feita a partir de sons reais, gerados por Lappé no Iraque. O autor mescla realidade e ficção em um enredo que se passa em 2011 (FRAGA, 2006, p.6 e 7);

Shooting War faz uma misturada de vários gêneros narrativos, como as histórias de guerra, suspense, espionagem, denúncia política, aliado a um fortíssimo impacto visual. Conta a história de um blogueiro em 2011 cujo site realiza um trabalho de denúncia das grandes corporações norte-americanas e que acaba filmando um ataque terrorista em plena Nova York. Na realidade, no mesmo prédio onde mora, que fica completamente destruído. Por artes da mídia, acaba se tornando um Herói e uma celebridade mundial de uma hora para outra. Tendo perdido tudo o que possuía, sem nenhuma perspectiva e com seus quinze minutos de fama se esvaindo, se torna repórter de uma tv a cabo dedicada 24 horas a noticiários sobre terrorismo ("Globo News: “Your home for 24-hour terror coverage”), e se dirige diretamente ao foco do terrorismo internacional: Iraque, disposto a mostrar a realidade do que acontece naquele absoluto inferno. Alternando momentos estilo “O Informante” com “Apocalipse Now”, Shooting War traz roteiro enxuto e muito inteligente.

Vale lembrar que a utilização dos meios internéticos para a criação de uma novela gráfica ainda está no começo. Este ainda é um ponto subvalorizado (a net como proporcionadora da arte visual como narrativa e não somente como divulgadora e organizadora, ainda um campo vasto e virtualmente inexplorado) e quando as experimentações gráficas avançam no sentido de uma estetização puramente visual, o resultado mesmo que absurdamente bonito e interessante, acabam esterilizando a própria narrativa; enfim, uma enorme discussão que ainda tem muito o que se desfiar.

-------------------------------------------------------------

Quem desejar adquirir o livro Bahia um Estado D´Alma, sobre a cultura do nosso estado, a obra encontra-se à venda nas livrarias LDM (Brotas), Galeria do Livro (Boulevard 161 no Itaigara e no Espaço Cultural Itau Cinema Glauber Rocha na Praça Castro Alves), na Pérola Negra (Barris em frente a Biblioteca Pública) e na Midialouca (Rua das Laranjeiras,28, Pelourinho. Tel: 3321-1596). E quem desejar ler o livro Feras do Humor Baiano, a obra encontra-se à venda no RV Cultura e Arte (Rua Barro Vermelho 32, Rio Vermelho. Tel: 3347-4929)

Nenhum comentário: