06 fevereiro 2009

Palavra pintada (2)

Em seu primeiro livro publicado no Brasil (A Palavra Pintada, L&PM, 1987), o jornalista Tom Wolfe retraça o curso errático da pintura moderna, desde a revolução cubista (uma revolução contra o conteúdo literário na arte) até o presente, quando, inconscientemente, a pintura se tornou uma paródia de si mesma, obcecadamente devotada a seguir a palavra dos críticos-gurus, cujas teorias altamente conflitantes entre si acabaram transformando a pintura em algo tão literário, acadêmico e maneirista quanto a pintura de salão, contra a qual inicialmente ela se rebelara.

Segundo Wolfe (um dos fundadores do new journalism) por volta de 1900, o cenário do artista – o espaço em que ele busca a honra, a glória, o conforto, o sucesso – mudara duas vezes. Na Europa do século XVII o artista era, literal e psicologicamente, o hóspede da aristocracia e da corte real (exceto na Holanda); belas artes e arte palaciana eram ma coisa só. No século XVIII o cenário transportou-se para os salons, nas casas da burguesia abastada e da nobreza, onde os membros da elite social amantes da Cultura se reuniam regularmente com artistas e escritores seletos. O artista ainda era o Cavalheiro e não o Gênio. Depois da Revolução Francesa, os artistas começaram a abandonar os salons e se filar aos cénales, que eram fraternidades de almas afins que se reuniam em algum lugar como o Café Guerbois, ao invés de fazê-lo numa casa de cidade; em torno de alguma figura romântica, de um artista, e não de um grã-fino. O que mantinha os cénales coesos era aquele alegre espírito de luta que todos chegamos a conhecer e a amar: choquem a classe média.
Inicialmente o Modernismo fora uma reação ao realismo do século XIX, uma abstração, um diagrama do realismo. Em suma, a nova ordem no mundo da arte era: primeiro você encontra a Palavra, depois você vê. Os artistas não pareciam ter a menor idéia de como a Teoria estava se tornando básica. Uma geração inteira de artistas devotou a carreira a buscar a Palavra (e a internalizá-la) e à tarefa extraordinária de se despojar do que porventura possuíssem der imaginação e técnica que não fosse coerente com a Palavra.
O professor, crítico, ensaísta e poeta Affonso Romano de Sant´Anna em uma palestra na Fundação Iberê Camargo disse: “Parece-me que hás dois tipos de artistas basicamente. Há o artista que eu chamo de artista sintomático e há o artista que eu chamo de artista autêntico, o artista maior. O que é o artista sintomático? Como na medicina ou na semiologia, o sintoma é aquilo que aparece visivelmente de uma enfermidade. Se uma coisa no meu organismo não aceita poeira ou mofo, eu tenho diversos sintomas disso. Então, se eu estou com uma mancha na pele, não é necessariamente a minha pele que está doente. Aquilo é apenas a denúncia de um outro problema do meu organismo, o telão de uma imagem que está vindo de outro lugar”.
“O artista sintomático é um sujeito que está no ambiente dele, na época dele, e reproduz o discurso que está sendo pronunciado nesse caos da pós-modernidade – o discurso do individualismo, do niilismo, da falta de perspectivas, da falta de história, do viver o instante, da falta de projeto. Ele sabe que a sociedade é assim e a reproduz acriticamente. É como se ele fosse uma antena que de repente captou um raio. Tinha uma coisa no ar, e ele a captou. Só que o raio o fulminou. O transformou em cinzas”.
“Ao passo que o artista autêntico, quando capta o raio, transforma aquele raio porque ele é uma usina de energia. Ele percebe aquela coisa e a reelabora, transformando-a em obra de arte. E essa obra de arte em luz, que transforma o que seria destruição em construção, que transforma o que seria Tânatos e morte, em vida. Isso é uma obra de arte”.
O declínio do projeto moderno da arte de vanguarda começou quando os gestos de ruptura dos artistas que não conseguiram converter-se em atos tornaram-se ritos. Assim, suas rupturas transformaram-se em convenção, ou como disse Octávio Paz, “a tradição da ruptura”. E a produção artísticas das vanguardas foram submetidas as formas mais frívolas da ritualidade – os vernissages, as entregas de prêmios e as consagrações acadêmicas. As tendências pós-modernas das artes plásticas, do happening às performances e à arte corporal acentuam esse sentido ritual e hermético. E apesar da dessacralização da arte e do mundo artístico, dos novos canais abertos para outros públicos, os experimentalistas acentuam sua transgressividade.

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