04 fevereiro 2009

Grafite: dos muros às galerias (2)

Protegidas pelo anonimato, as pessoas fazem das portas e paredes do banheiros públicos um espaço livre para suas fantasias. Das marcas deste prazer solitário, não escapam nem mesmo os sanitários femininos. O Muro de Berlim (um sobrevivente em concreto da Segunda Guerra e testemunha eloquente da guerra fria que a sucedeu) tinha duas faces completamente diversas. Do lado Oriental, estava sempre limpo e de pintura intacta. Do outro Ocidental, desenhos e frases se sucediam, ora de forma articulada ora desordenadamente, espalhando-se por longos trechos.

No final dos anos 60 os estudantes descobriram as propriedades do Muro como meio eficiente de comunicação visual. Entretanto, foram os anos 70 que iniciaram a tatuagem de cada centímetro das paredes cinzas e, dessa arte transitória, superposta, anônima – nesse quando executada por mestres – e de propriedade de todos, surgiu uma nova realidade. O símbolo da vontade blindada passou a ser o símbolo da possibilidade de reação. Os anos 80 consagraram uma estética própria da arte do muro, feita de desenhos com giz, máscaras, estêncil, pinturas com pincel, broxa, rola ou spray; trabalhos com relevo ou mosaico.
Quando da demolição do Muro (novembro de 1989), estes garranchos figuraram nas páginas dos principais órgãos de imprensa mundial, como a significar a própria liberdade de expressão. Pichação, portanto, é protesto e crítica. Não é mais apenas o ato de escrever com pichi, aliás algo raro hoje. Ao contrário, ´pichar é criticar, pichação é a crítica expressa na parede. Por isso, há quem diferencie pichação e grafite, opondo os artistas grafiteiros e seus desenhos aos rabiscos dos pichadores anônimos. Grafite seria arte, pichação, sujeira; Como quer que seja, têm algo em comum: são sempre, uma certa transgressão e, por isso, só existem em sociedades razoavelmente abertas.
A linguagem da contestação, expressa através de pichações pelos muros teve seu auge em Salvador na década de 80. Entre nós, o fenômeno dos graffiti jamais atingiu as dimensões que teve em Nova Iorque ou Paris. Afinal, nossa terra tem palmeiras, nossas vidas tem mais muros; nossos muros, menos letras, nossas letras, maus escuros.
O artista Miguel Cordeiro por exemplo criou um personagem e,m nossos muros, o Faustino. Em 1979 quando ele começou a rabiscar paredes, havia toda uma efervescência do grafite: Mancha, Min, Zezin, Faustino vive Julio Iglesias, Faustino usa calça Topeka, usa escovinha pata pata. O grupo Baldeação (Chico Muniz fez parte) utilizou o muro como um novo veículo para a poesia. Com o grafite, um novo universo estético transcendeu objetivamente a cotidianeidade dos trabalhos domésticos e instaurou o princípio do prazer.
O grafite começou como manifestação espontânea, geralmente de grupos marginalizados. O que importava na origem do grafite não era o estilo ou a beleza, mas a força que o traço podia alcançar ao ser inserido num lugar que não lhe era destinado. Assimilado pela publicidade, meios de comunicação e campanhas políticas em geral, o grafite perdeu parte do seu caráter marginal e passou a ser encarado como mais uma griffe na imensa poluição visual que veste a cidade. Os autores assinavam Mancha, Raio, Sombra, personagens dos quadrinhos. Personagens malditos, bandidos, deixados à margem. E esses grafiteiros escolheram esses nomes porque se identificavam.

O artista plástico Joelino Filho, um anárquico que pichou os muros usando um tipo de público. Ele retratava o momento histórico. Sua terapia era extravasar suas idéias nos muros. A linguagem dos quadrinhos se identifica com a linguagem do grafite porque é uma linguagem, rápida, moderna para o final do século XX.
“O grafitar que se difunde de forma intensa nos centros urbanos é uma forma de expressão artística e humana. É impossível dissociá-la do princípio da liberdade de expressão. Tem como suporte para sua realização não somente o muro, mas a cidade como um todo. Postes, calçadas e viadutos são preenchidos por enigmáticas imagens, muitas vezes repetidas à exaustão, características herdadas da pop art”, revela Celso Gitahy, e conclui:
“Mas graffiti e pichação são a mesma coisa? Não. São posturas diferentes, com resultados plásticos diferentes. O graffiti aceita dialogar com a cidade de forma interativa, tanto que, ao deixar o número do telefone assinalado, fica cara a cara com o proprietário do espaço. Talvez, um dia, todo centro urbano, apesar de caótico, possa se tornar uma grande galeria de arte a céu aberto”.

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