02 março 2020

Risério bate de frente na fantasia fascista da esquerda identitária


Ele não tem papas na língua. Polêmico, provocador e reflexivo. Esses são alguns dos adjetivos que se pode atribuir a obra do antropólogo baiano Antonio Risério: Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária. Seu livro é de enfrentamento direto, de intervenção intelectual e combate político frontal sobre a chamada esquerda pós-moderna, com sua linha de frente nos movimentos ditos “identitários” e suas milícias brutais. Como abomina qualquer espécie de fascismo seja nos extremos do “petismo”, do “identitarismo” ou do “bolsonarismo” e recusa a aceitar o silencio dos “bem-pensantes” sob o assunto no ataque exclusivo ao fascismo direitista.



Com erudição e clareza, o antropólogo vai narrando a história da formação desses movimentos excludentes: do racionalismo neonegro e seu estranho discurso em defesa da pureza racial; da radicalização assexuada do neofeminismo com seu horror ao desejo heterossexual, da abolição das classes-sociais, substituídas por critérios étnicos e sexuais, no neomarxismo acadêmico, do combate racistas às mestiçagens.



E apresentou ações truculentas protagonizadas não só pela extrema direita e da “esquerda identitária” que se julga moralmente superior ao resto da humanidade: o psicólogo canadense Jordan Peterson, o historiador Ian Buruma nos EUA, o geógrafo e analista político Demétrio Magnoli e o filósofo Luis Pondé impedido de falarem na Feira literária em Cachoeira, Bahia ou da blogueira cubana Yoani Sanchez que depois de anos lutando por maior liberdade de expressão, ao aterrissar no Brasil os militantes esquerdistas a humilharam publicamente e a impediram de abrir a boca para dizer qualquer coisa – é rigorosamente proibido criticar a ditadura cubana nos terreiros e torrões do esquerdismo brasileiro, Ou mesmo um “coletivo” (sinônimo de fascismo) invadiu a Escola de Teatro da UFBA para impedir a encenação da peça Sob as Tetas da Lola, dirigida pelo professor Paulo Cunha.




Violência à direita e violência à esquerda. Uma caça às bruxas com sinais ideológicos pretensamente opostos, tudo sob o signo do fascismo. Esse é o quadro atual de intolerância e agressividade dos identitarismos. Para o estudioso, as atuais movimentações do identitarismo tiveram sua origem na agenda contracultural dos anos 60. “Alguma das fontes dessa mudança (a nova conjuntura política e a reconquista da capacidade de interagir por parte da assim chamada `sociedade civil´, agora comboiada por padres e advogados, gente tradicionalmente conservadora que, diante dos desequilíbrios sociais brasileiros e das violências do regime militar, bandeou com firmeza para os campos do ativismo antigovernamental” (pag.28). Para ele esses movimentos, que nasceram do respeito ao outro, passaram a tomar como inimigo justamente o outro. “É feroz o combate de neofeministas e neonegros à outridade. A tudo que signifique diferença. Este é o ponto fundamental”.(pag.33).



No terceiro capitulo (Caminhos para a cracolândia mental) ele aborda o apartheid politicio,ideológico e cultural. A quantificação sistemática e sistemática louvação do gueto. “A esquerda pós moderna deu meia volta volver, assumiu o que a direita norte americana sempre quis que ela assumisse, rebatizou plurarismo de multiculturalismo e assim, de roupagem nova, a onda conquistou espaço antes impensável” (pag41). Contemplar, refletir e meditar são verbos em extinção para a turma da esquerda identitária.




Em outro capítulo analisa o neofeminismo norte americano, “com seus discursos provincianos e posturas reacionárias, primando pelo obscurantismo repressivo”. Para ele “esse neofeminismo é uma degeneração grotesca do feminismo original da contracultura, na década de 1960, cujo libertarismo espalhou-se então por quase todos os cantos do mundo. E sob o signo da “revolução sexual”, que hoje horroriza o neofeminismo puritano, fundado no combate ao desejo e na repulsa ao sexo heterossexual” (pag.66).



Analisa ainda a mixofobia do feminismo neogrego que gerou uma gíria racista para ridicularizar e estigmatizar pretos que se envolvem sexual e/ou amorosamente com brancos, chamando “palmiteiros” (comedores de palmito, que é branco). Além de abordar fatos que acontecem hoje em tantos “países africanos como  Angola e a Nigéria, por exemplo: a exploração de negro pelo negro – que vem  da escravidão milenar vigente em tantos reinos e aldeias, passa pela rainha Ginga (ou Nzinga) usando suas escravas pretas como poltronas....”. E lembra: “ao contrário de que somos historiadores esquerdistas adoram dizer, o Brasil não foi o último a abolir a escravidão. Ele continuava existindo em África Serra Leoa e o Zanzibar abolirá legalmente a escravidão bem depois do Brasil. E a Arábia Saudita só o fez em 1962, quando o mestiço Mané Garrincha, descendente de índios fulniós, decidia o casamento mundial no Chile” (pag.76).




O sexto capítulo ele faz a defesa do apartheid político e cultural, sobre a ignorância da apropriação cultural. “O turbante é árabe – e árabe nunca foi preto, mas árabe” (pag..84). Capoeira (uma palavra tupi) não  existe, não é conhecida em Angola. E com diversos fatos históricos o estudioso mostra que “a história da humanidade é um vastíssimo espaço fervilhante de trocas, empréstimos, imposições, assimilações, reinvenções e misturas” (pag.85). Política francamente excludente que gera nichos discursivos remuneradores, pregando que só mulheres têm “para falar de mulheres, só pretos têm `legitimidade` para falar de pretos e assim por diante. Ou seja, ter o monopólio da fala.



Para Risério, o problema já começa com a natureza mulata de todos. “Com a mestiçagem. Para se prolongar no caráter mestiço de seus pensamentos. A lógica binária não pode aceitar o meio-termo ou um terceiro termo ´se o fizer, desmantela-se” (pag.113).




A bolha neonegra, o afro-oportunismo é tema do último capítulo. Com diversos exemplos mostra como os chamados “profissionais da negritude” tentam não só dar tonalidades róseas à milenar escravidão africana, como aboliu mestiçagens, falsificando fundo a realidade brasileira. E cita os mulatos Machado de Assis, Lima Barreto e Carlos Marighella. Um bom exemplo, Stella de Oxóssi, Odé Kayodé, ialorixá-mor do Brasil na passagem do século XX para o XXI, definindo-se não como negra, mas como “marrom”, em seu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia. Outro absurdo político cultural “é tratar o grande lutador anti-imperialista, guerrilheiro urbano, comandante da Ação Libertadora Nacional, Carlos Marighella (foto acima), na pauta da classificação racista/imperialista da one drop rule norte americana, que virou moda e dogma em nosso político acadêmico neonegro....”.



No oitavo capítulo  aborda a onipotência do palavreado. “O combate à cultura estabelecida chegou ao domínio idiomatico As pessoas se dispuseram a agir sobre a língua para mudar o mundo. Não deixa de ser uma inversão curiosa. Seria mais sensato agir sobre o mundo para mudar a língua. Afinal, as cores existem não porque tenhamos palavras para elas. É o contrário” escreveu na página 117. Era a formação da onda do vocabulário dos “policamente corretos”. Deficientes físicos são portadores de necessidades especiais, cego por deficiente visual, terreiros de candomblé para templo religioso negro, mãe de santo para sacerdotisa, bozo por oferenda.



Para ele cada grupo superestima seu lugar e sua força (gay, feministas), alimenta um senso excessivo de sua própria importância, achando-se no centro do mundo, e assim perde a noção de realidade, quando considera a eleição de Bolsonaro. “Tudo se passa, para eles, como se a recessão econômica, o autoritarismo petista, o espetáculo escandaloso de uma corrupção sistêmica, a escalada do desemprego, o laissez faire no campo da criminalidade, a degradação dos serviços púbicos de saúde e educação, a crise na área de segurança, etc, não tivesse contado decisivamente para nada” (pág.139).



Existe um furor para reprimir divergências, inibir discordâncias, sufocar dissensões. Tudo brota da intolerância. Estamos bem longe da “prática política de escuta”, de que palavra Barthes. Do gosto enriquecedor pelo convívio democrático, conclui o seu lugar de fala em defesa do verdadeiro convívio político e cultural.




Antonio Risério nasceu em Salvador, Bahia, em 1953. Poeta e ensaísta, defendeu tese de mestrado em Sociologia, com especialização em Antropologia. Integrou grupos de trabalho que implantaram a televisão educativa, as fundações Gregório de Mattos e o hospital Sarah Kubitschek, na Bahia. Elaborou o projeto geral para a implantação do Museu da Língua Portuguesa (São Paulo) e do Cais do Sertão Luiz Gonzaga (Pernambuco). Foi diretor do Centro de Referência Negromestiça, onde editou a revista Padê. Escreveu, entre outros, os livros Carnaval Ijexá (Corrupio, 1981), Caymmi: Uma Utopia de Lugar (Perspectiva, 1993), Textos e Tribos (Imago, 1993), Avant-Garde na Bahia (Instituto Pietro Bardi e Lina Bo, 1995), Oriki Orixá (Perspectiva, 1996), Ensaio sobre o Texto Poético em Contexto Digital (Fundação Casa de Jorge Amado, 1998) e Uma História da Cidade da Bahia (Versal, 2004), A utopia brasileira e os movimentos negros (2007) e A cidade no Brasil (2012), os dois últimos publicados pela Editora 34.


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