Vivemos um momento de desidentificação
com a memória nacional e regional. O livro de Durval Muniz de Albuquerque
Júnior, “A Invenção do Nordeste e outras artes” (Cortez Editora, 2006) é uma
boa prova disso. O trabalho de pesquisa para a realização do doutorado em
História na Unicamp, defendido em 1994 apresenta o surgimento de um recorte
espacial, de um lugar imaginário e real no mapa do Brasil, que todos nós
conhecemos profundamente, não importa de que maneira, mas que nunca pudemos
imaginar com uma existência tão recente. E falar do Nordeste é inventariar os
muitos estereótipos e mitos que emergiram com o próprio espaço físico
reconhecido no mapa composto por alguns estados e cidades. É mobilizar todo o
universo de imagens negativas e positivas, socialmente reconhecidas e
consagradas, que criaram a própria idéia de Nordeste.
Um trabalho de pesquisa aprofundado que
desconstrói foucaltianamente os discursos que deram visibilidade e que tornaram
dizível a região nordestina. O que o livro interroga não é apenas por que o
Nordeste e o nordestino são discriminados, marginalizados e estereotipados pela
produção cultural do país e pelos habitantes de outras áreas, mas ele investiga
por que há quase 90 anos dizemos que somos discriminados com tanta seriedade e
indignação. Como, por meio de nossas práticas discursivas, reproduzimos um
dispositivo de poder que nos reserva o lugar de pedintes lamurientos. “Nós, os
nordestinos, costumamos nos colocar como os constantemente derrotados, como o outro
lado do poder do Sul, que nos oprime, discrimina e explora. Ora, não existe
esta exterioridade às relações de poder que circulam no país, porque nós também
estamos no poder, por isso devemos suspeitar que somos agentes de nossa própria
discriminação, opressão ou exploração. Elas não são impostas de fora, elas
passam por nós. Longe de sermos seu outro lado, ponto de barragem, somos ponto
de apoio, de flexão. A resistência que podemos exercer é dentro desta própria
rede de poder, não fora dela, com seu desabamento completo”, escreveu no
prefácio.
“O Nordeste é tomado, neste texto, como
invenção, pela repetição regular de determinados enunciados, que são tidos como
definidores de caráter da região e de seu povo, que falam de sua verdade mais
interior”. As fontes utilizadas foram desde o discurso acadêmicos, passando
pela publicação em jornais de artigos ligados ao campo cultural, à produção
literária e poética de romanistas e poetas nordestinos ou não, até músicas,
filmes, peças teatrais, que tomaram o Nordeste por tema e o constituíram como
objeto de conhecimento e de arte.
Divididos em três capítulos, o primeiro,
Geografia em Ruínas acompanha as transformações históricas que possibilitaram a
emergência da idéia de Nordeste, desde a emergência do dispositivo das
nacionalidades, passando por uma mudança na sensibilidade social em relação ao
espaço, à mudança da relação entre olhar e espaço trazido pela modernidade e
pela sociabilidade burguesa, urbana e de massas.
O segundo capítulo, Espaços da Saudade,
aborda esta invenção regional, o surgimento do Nordeste como um novo recorte
espacial no país, rompendo com a antiga dualidade Norte/Sul. A seca, o cangaço.
O messianismo, as lutas de parentela pelo controle dos Estados, são temas que
fundarão a própria idéia de Nordeste, uma área de poder que começa a ser
demarcada, com fronteiras que servirão de trincheiras para a defesa dos
privilégios ameaçados.
No terceiro capítulo, Territórios da
Revolta, é abordado uma série de reelaboração da idéia de Nordeste, feitas por
autores e artistas ligados ao discurso de esquerda. Nordeste gestado, a partir
dos anos 30, por meio de uma operação de inversão das imagens e enunciados
consagrados pela leitura conservadora e tradicionalista que dera origem à
região. Obras como as de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Portinari, João Cabral
de Melo Neto produzem Nordestes vistos pelo avesso, Nordeste como região da
miséria e da injustiça social. Estes Nordestes, construídos pelo avesso, ficam
presos, no entanto, aos mesmos temas, imagens e enunciados consagrados e
cristalizados pelos discursos tradicionalistas.
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