Durval Muniz de Albuquerque Jr informa
ainda que no Sul, a partir da década de 20, pensa-se a identidade nacional
dividida em pólos antagônicos. São Paulo, Pernambuco e Bahia são tomados como
células iniciais do tecido nacional. O discurso histórico centra-se na história
dessas três áreas, para construir a história do Brasil. “O Brasil seria um país
cindido entre a inteligência do Sul, mais bem aparelhada em seus conceitos de
realidade; e, de outro lado, o ´nortista´, fantasioso, imaginoso e sensitivo,
delirante e compadecido. Razão e sentimento, dilema em que se cindia a
identidade nacional, representada pela divisão entre suas duas regiões”. E
assim ele apresenta o pensamento de Menotti del Picchia, Mario e Oswald de
Andrade, Amadeu Amaral, entre outros. Para o estudioso, o Nordeste, espaço da
saudade, da tradição, foi também inventado pelo romance, pela música, pela
poesia, pela pintura, pelo teatro etc.
O Nordeste como o lugar da tradição é
sempre tematizado como uma região rural, onde as cidades aparecem, como símbolo
da decadência, do pecado, do desvirtuamento da pureza e d inocência camponesa.
Embora muito antigo, o fenômeno urbano e metropolitano no Nordeste é
praticamente ignorado por sua produção artística e literária. Sendo o local de
uma das primeiras manifestações industriais no país, a indústria é vista com
desconfiança, como um corpo estranho numa “região agrícola”. “Olhar o Nordeste
da cidade grande é como olhar do lado averso de um binóculo. Tudo longe, muito
embaraçado”. Em algumas formulações, o Nordeste aparece como o mundo
“primitivo”, em oposição à degenerescência do mundo “civilizado”.
Para o doutorado em História na Unicamp,
e professor das universidades federais do Rio Grande do Norte e de Pernambuco,
os romances der Graciliano Ramos e Jorge Amado. Da década de 30, a poesia de
João Cabral de Melo etc, a pintura de caráter social, da década de 40, e o
Cinema Novo, do final dos anos 50 e início dos anos 60, tomarão o Nordeste como
o exemplo privilegiado da miséria, da fome, do atraso, do subdesenvolvimento,
da alienação do país. “Tomando acriticamente o recorte espacial Nordeste, esta
produção artística ´de esquerda´ termina por reforçar uma série de imagens e
enunciados ligados à região que emergiram com o discurso da seca, já no final
do século passado. Vindo ao encontro, em grande parte, da imagem de
espaço-vítima, espoliado; espaço da carência, construído pelo discurso de suas
oligarquias. Eles lançam mão de uma verdadeira mitologia do Nordeste, já
fabricada pelos discursos anteriores, e a submete a uma leitura ´marxista´que a
inverte de sentido, mantendo-a, no entanto, presa à mesma lógica e questões. Do
Nordeste pelo direito, passamos a vê-lo pelo avesso, em que as mesmas linhas
compõem o tecido, só quer, no avesso, aparecem seus nós, seus cortes, suas
emendas, seu rosto menos arrumado, embora constituinte também da própria malha
imagético-discursiva chamada Nordeste”.
Ele aborda a questão das contradições de
uma literatura presa a um dispositivo de poder e às sua lógica vivido pelo povo
brasileiro. “Na literatura realista, o significado e o significante ficam
unidos por ligações inseparáveis. Nesta, a linguagem denotativa impõe um
sentido como verdadeiro, enquanto o autor impõe um sentido ao leitor, que tende
a participar pouco da construção do sentido da obra. Ela não é uma prosa
dialógica, mas monológica, em que as identidades dos personagens são sempre
fichadas, em que não se permite a afirmação da negação, que é excluída numa
síntese dialética ou conciliada por um trabalho de harmonização pelo uso da
linguagem simbólica”.
O Nordeste destes romances é o Nordeste
artesanal, no qual o industrial é visto como dramático e feio. Um Nordeste mais
dos marginais, dos malandros, dos trabalhadores informais e autônomos. Um Nordeste
da fuga do trabalho rotineiro e da disciplina industrial.
Em sua conclusão, Durval Muniz escreveu
que o Nordeste é uma invenção recente na história brasileira, se gestou no
cruzamento de uma série de práticas regionalizantes, motivadas pelas condições
particulares com que se defrontam, as províncias do Norte, no momento em que o
dispositivo da nacionalidade, que passa a funcionar entre nós, após a
Independência, coloca como tarefa, para os grupos dirigentes do país, a
necessidade de se construir a nação. “O Nordeste é, portanto, filho da
modernidade, mas é filho reacionário, maquinaria imagético-discursiva gestada
para conter o processo de desterritorialização por que passavam os grupos
sociais desta área, provocada pela subordinação a outra área do país que se
modernizava rapidamente: o Sul”.
“O Nordeste, na verdade, está em toda
parte desta região, do pais, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização
de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e
do Nordeste. Estereótipos que são operativos, positivos, que instituem uma
verdade que se impõem de tal forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e
das falas regionais, em nome de um feixe limitado de imagens e falas-clichês,
que são repetidas ad nausem, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja
pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região”.
Assim a obra de Muniz questiona esta
representação regional e a prisão dos discursos a este dispositivo de força que
a sustentou e a sustenta. “É preciso fugir do discurso da súplica ou da
denúncia da miséria; é preciso novas vozes e novos olhares que compliquem esta
região, que mostrem suas segmentações, as cumplicidades sociais dos vencedores
com a situação presente deste espaço. Se o Nordeste foi inventado para ser este
espaço de barragem da mudança, da modernidade, é preciso destruí-lo para poder
dar lugar a novas espacialidades de poder e de saber”.
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