O Nordeste como o lugar da tradição é sempre tematizado como uma região rural, onde as cidades aparecem, como símbolo da decadência, do pecado, do desvirtuamento da pureza e d inocência camponesa. Embora muito antigo, o fenômeno urbano e metropolitano no Nordeste é praticamente ignorado por sua produção artística e literária. Sendo o local de uma das primeiras manifestações industriais no país, a indústria é vista com desconfiança, como um corpo estranho numa “região agrícola”. “Olhar o Nordeste da cidade grande é como olhar do lado averso de um binóculo. Tudo longe, muito embaraçado”. Em algumas formulações, o Nordeste aparece como o mundo “primitivo”, em oposição à degenerescência do mundo “civilizado”.
Para o doutorado em História na Unicamp, e professor das universidades federais do Rio Grande do Norte e de Pernambuco, os romances der Graciliano Ramos e Jorge Amado. Da década de 30, a poesia de João Cabral de Melo etc, a pintura de caráter social, da década de 40, e o Cinema Novo, do final dos anos 50 e início dos anos 60, tomarão o Nordeste como o exemplo privilegiado da miséria, da fome, do atraso, do subdesenvolvimento, da alienação do país. “Tomando acriticamente o recorte espacial Nordeste, esta produção artística ´de esquerda´ termina por reforçar uma série de imagens e enunciados ligados à região que emergiram com o discurso da seca, já no final do século passado. Vindo ao encontro, em grande parte, da imagem de espaço-vítima, espoliado; espaço da carência, construído pelo discurso de suas oligarquias. Eles lançam mão de uma verdadeira mitologia do Nordeste, já fabricada pelos discursos anteriores, e a submete a uma leitura ´marxista´que a inverte de sentido, mantendo-a, no entanto, presa à mesma lógica e questões. Do Nordeste pelo direito, passamos a vê-lo pelo avesso, em que as mesmas linhas compõem o tecido, só quer, no avesso, aparecem seus nós, seus cortes, suas emendas, seu rosto menos arrumado, embora constituinte também da própria malha imagético-discursiva chamada Nordeste”.
Ele aborda a questão das contradições de uma literatura presa a um dispositivo de poder e às sua lógica vivido pelo povo brasileiro. “Na literatura realista, o significado e o significante ficam unidos por ligações inseparáveis. Nesta, a linguagem denotativa impõe um sentido como verdadeiro, enquanto o autor impõe um sentido ao leitor, que tende a participar pouco da construção do sentido da obra. Ela não é uma prosa dialógica, mas monológica, em que as identidades dos personagens são sempre fichadas, em que não se permite a afirmação da negação, que é excluída numa síntese dialética ou conciliada por um trabalho de harmonização pelo uso da linguagem simbólica”.
O Nordeste destes romances é o Nordeste artesanal, no qual o industrial é visto como dramático e feio. Um Nordeste mais dos marginais, dos malandros, dos trabalhadores informais e autônomos. Um Nordeste da fuga do trabalho rotineiro e da disciplina industrial.
Em sua conclusão, Durval Muniz escreveu que o Nordeste é uma invenção recente na história brasileira, se gestou no cruzamento de uma série de práticas regionalizantes, motivadas pelas condições particulares com que se defrontam, as províncias do Norte, no momento em que o dispositivo da nacionalidade, que passa a funcionar entre nós, após a Independência, coloca como tarefa, para os grupos dirigentes do país, a necessidade de se construir a nação. “O Nordeste é, portanto, filho da modernidade, mas é filho reacionário, maquinaria imagético-discursiva gestada para conter o processo de desterritorialização por que passavam os grupos sociais desta área, provocada pela subordinação a outra área do país que se modernizava rapidamente: o Sul”.
“O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do pais, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõem de tal forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais, em nome de um feixe limitado de imagens e falas-clichês, que são repetidas ad nausem, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região”.
Assim a obra de Muniz questiona esta representação regional e a prisão dos discursos a este dispositivo de força que a sustentou e a sustenta. “É preciso fugir do discurso da súplica ou da denúncia da miséria; é preciso novas vozes e novos olhares que compliquem esta região, que mostrem suas segmentações, as cumplicidades sociais dos vencedores com a situação presente deste espaço. Se o Nordeste foi inventado para ser este espaço de barragem da mudança, da modernidade, é preciso destruí-lo para poder dar lugar a novas espacialidades de poder e de saber”.
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