Essa repressão à mulher é um dos temas da obra Erotismo e Pornografia nas Artes que estou escrevendo há cinco anos. Esse material é inédito. Eis um recorte:
A oposição instituída entre erotismo e maternidade pelo biopoder (modalidade teórica de pensar no processo de medicalização do Ocidente, denominado pelo pensador francês Michel Foucault), retomou num discurso cientificista aquilo que fora estabelecido pela moral do cristianismo. A histeria foi matéria-prima do discurso psicanalista.
Foucault observa que em quase todas as culturas existe uma arte erótica, isto é, formas de iniciação ao prazer e à satisfação sexual (como por exemplo, o Khama Sutra ou a arte amorosa japonesa). Em contrapartida, nossa cultura – cristã, européia, ocidental – deu origem a algo insólito: uma ciência sexual, curiosidade e vontade de tudo saber sobre o sexo para melhor controlá-lo. “Scientia sexuales” opõe-se culturalmente, segundo Foucault, a “ars erótica” que certas civilizações (China, Índia, mundo muçulmano) aplicam à sensualidade, definida como mistério e assunto passível de um processo de iniciação e aprendizado. A “scientia” ocidental procura, ao contrário, definir seus parâmetros dentro dos quais opera a inclusão do que é aceitável no campo da normalidade, e a exclusão do inaceitável deste mesmo campo. Mas ao excluí-los, é preciso estudá-los conscientemente. Os psiquiatras criam toda uma terminologia para designar o anormal. Krafft-Ebing estuda os zoófilos e os zooerastas; Rohleder trata dos auto-monossexuais. Surgem expressões como mixoscofilos, ginecomastas, presbiófilos sexoestéticos e mulheres dispareunistas. Cada uma destas perversões corresponde à identificação de um conjunto bem articulado de sintomas. A normalização do sexo implica, desta maneira.
As práticas de controle da sexualidade produziram violências que ainda hoje se reproduzem em sociedades africanas e entre os muçulmanos, como a extirpação do clitóris na mulher, que teriam seu contraponto nas práticas sadomasoquistas até os dias de hoje.
Em 1997 uma somaliana fugitiva denuncia a mutilação feminina. Em 28 países africanos, na Índia e em alguns países asiáticos, quando as meninas começam a apresentar os atributos femininos, os pais exigem e as mães executam a extirpação do clitóris e, às vezes, até dos lábios da vagina, usando tesouras, lâminas e mesmo pedaços de vidro. Numa cerimônia banhada em sangue e dor, costuram tudo, deixando uma pequena abertura para a saída da urina e da menstruação. A tortura acompanha a vida destas mulheres. Nada sensibiliza os pais que exigem a mutilação como garantia de pureza, enquanto os maridos a exigem como garantia de felicidade da esposa. As mães compactuam com o crime e repetem, o que lhes ensinaram: é um ato religioso, que faz parte da cultura do povo e que lhes foi transmitido pelas mães e avós, como o único meio de garantir o bom comportamento das meninas e impedir que elas fiquem livres.
“O rito de passagem, iniciático e religioso, serve de véu para encobrir o verdadeiro motivo do ato cruel, bárbaro, macabro. As sociedades ocidentais e orientais foram contaminadas por uma máxima que elas repetem incessantemente: a superioridade do macho sobre a fêmea, que se manifesta no âmbito biológico, intelectual, social e religioso; foram contaminados ainda pelo postulado fundamental, aceito pelos pensamentos greco-romano e judaico-cristão: o desejo e o prazer femininos são animalescos e a sexualidade da mulher, comandada pelos sentidos, deve ser domada, porque é perniciosa para a sociedade e para o homem”, informa a professora Maria Nazareth Alvim de Barros.
Segundo a historiadora britânica Geraldine Brooks, o costume da circuncisão feminina se originou na África Central na Idade da Pedra, seguindo para o norte do continente africano. No Ocidente, a circuncisão era utilizada como processo terapêutico até os anos 50. Médicos britânicos e norte-americanos praticavam a clitoridectomia e a castração feminina (retirada dos ovários) para enfrentar melancolia e ninfomania. Até o século 19, acreditava-se que as mesmas práticas “curavam” histeria, masturbação, lesbianismo e epilepsia.
Fatores culturais não devem servir de pretexto para violações aos direitos humanos, segundo a advogada norte americana Layli Miller, que obteve asilo nos EUA para uma africana que fugiu de Togo a fim de evitar a mutilação genital: Fauziya Kassindja. Entre as formas de discriminação contra as mulheres, a advogada cita o tráfico de mulheres, a violência doméstica e o “horror killings” (assassinatos motivados por ofendas à “honra”). “Crimes de honra também são um problema no Brasil. Parecem diferentes do que ocorre no Paquistão, onde uma mulher pode ser morta por se recusar a casar-se com o homem indicado por seu pai, mas traduzem a mesma idéia: a honra de um homem é um pretexto para assassinatos. Por exemplo, se ele descobre que a mulher o trai, ele a mata e não necessariamente é enviado à prisão. Isso também é crime de honra”. A cultura judaica-cristã atribuiu a idéia de culpa relacionada ao sexo e a circuncisão masculina (corte no pênis) indica o ingresso da criança no seio da comunidade.
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