03 maio 2011

Controle e disciplina dos fiéis (2)

As liberdades democráticas são a principal reivindicação do mundo árabe, região onde concentra a maioria de seguidores do islamismo. Nessa localidade as mulheres são as maiores vítimas da repressão. Amordaçadas através da burca que lhes cobre o corpo, o rosto e a boca, elas não tem direitos sexuais, são submetidas à mutilação genital, não tem direitos patrimoniais, intelectuais ou mesmo de leve locomoção. Não dirigem veículos, não podem mostrar os cabelos, usar roupas que realcem as formas do corpo e são obrigadas a cobrir-se da cabeça aos pés para sair às ruas.


Essa repressão à mulher é um dos temas da obra Erotismo e Pornografia nas Artes que estou escrevendo há cinco anos. Esse material é inédito. Eis um recorte:


Foram necessários quase dois séculos para que essa lógica se transformasse em normas sociais e conferisse a tal igualdade de condições entre os sexos. Foi necessário uma longa marcha que se realizou em várias etapas, na qual as mulheres foram progressivamente ganhando terreno no espaço social. Com efeito, do direito de votar ao de poderem ser educadas, passando a ter acesso aos espaços sociais da masculinidade, o percurso das mulheres foi marcado por um longo combate de muitas idas e vindas, progressões e retrocesso. Os anos 60 do século XX foram o momento crucial dessa ruptura, quando o feminismo rompeu de vez as amarras tradicionais da condição da mulher no Ocidente.


Enquanto a mulher teria de ser destituída de seu erotismo, o homem era perfeitamente reconhecida sua potencialidade desejante ao lado de sua efetividade reprodutiva. Deslocando-se livremente entre os espaços público e privado, isto é, entre os espaços social e familiar, ao homem era permitido o duplo exercício erótico e reprodutivo. Assim, o sacrossanto espaço para a reprodução da espécie era a família, e o espaço social era o lugar efetivo para a existência do erotismo.


Assim, a grande expansão da antiga prática da prostituição, que ocorreu ao longo do século XIX, seria a contrapartida social para que pudesse definir o exercício do erotismo masculino. Nesse espaço, os homens poderiam satisfazer suas demandas eróticas, impossibilitadas parcialmente no campo da família. Contudo, a prostituição foi muito bem regulada pelo Estado, por instrumentos da nascente medicina social, para que não colocasse em risco a demanda de reprodução na família. Desta forma, a prostituição teve territórios muito bem circunscritos do espaço urbano – apenas em certos quarteirões e bairros da cidade a prostituição era permitida. Por isso mesmo, tais lugares passaram a ser amaldiçoados e proibidos no imaginário coletivo, representando sempre a desordem, a presença do mal e a ameaça de morte


Assim, a prostituição era objeto de vigilância exercida pelo Estado, por intermédio da polícia médica e da higiene social. O desejo e a reprodução eram bem regulados entre os espaços público e privado, ou seja, entre o espaço social ampliado e a família. Consequentemente, o erotismo poderia ser usufruído pelos homens no circuito semi clandestino da prostituição, enquanto o amor, em contrapartida, se identificava com a ordem da família, sempre voltada para a reprodução.


As mulheres que fugiam e se desviavam do reto e sagrado caminho da maternidade eram ativamente culpabilizadas, moralmente diminuídas em seu valor e até mesmo criminalizadas pela assunção de outras figuras sociais. Essas mulheres desviantes eram bem definidas nas suas configurações sociais e morais. Existia uma verdadeira galeria de “mulheres perigosas” que foram bem delineadas pelo discurso da medicina de então. A produção médica da época descreveu minuciosamente quatro modalidades de desvio moral da feminilidade: a prostituição, caracterizada pela assunção positiva do erotismo como forma de vida e a recusa da existência familiar e maternal; a ninfomania, marcada pelo erotismo excessivo, que transbordava numa espécie de desejo insaciável presente nessas mulheres; a infanticida, aquela que mata de bom grado os filhos recém-nascidos, para se livrar do peso da maternidade e manter-se livre para aventuras eróticas; a mulher histérica seria aquela que gostaria de ser como a prostituta, a ninfomaníaca e a infanticida, mas não suportaria passar da imaginação para ação, isto é, deslocar-se do registro da fantasia para o do ato. Presa no conflito psíquico entre erotismo/maternidade, não conseguiria jamais se deslocar do registro do imaginário para o do real. Com isso, a mulher histérica adoeceria psiquicamente, presa ao seu conflito moral, imobilizada por não exercer todos os seus anseios e desejos.


Essas diferentes modalidades de produção de subjetividade advindas da estratégia desse poder, pela oposição que acabou de promover entre erotismo e maternidade no ser da mulher estabeleceu, no século XIX, a prática médica sistemática de extração do clitóris, nas mulheres mais indóceis aos imperativos da maternidade e que ansiavam também pelos doces deleites do erotismo. Com isso, a extração cirúrgica do clitóris poderia colocar essas mulheres no caminho virtuoso da maternidade, já que não seriam mais tomadas de assalto por suas demandas eróticas. A maternidade acabaria por se impor por si mesma pela despossessão do desejo feminino figurado pelo clitóris.

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