13 setembro 2007

Linguagem sexual (5)

A proliferação de discursos sobre o sexo no Ocidente, acelerada a partir do século XVIII, foi incitada pelas próprias instâncias do poder – como a pastoral católica e o sacramento da confissão, por exemplo – com a finalidade de estabelecer controles caracterizados pela repressão ao prazer. No século XIX, o discurso médico científico, ainda não totalmente liberto da repugnância quanto a tais assuntos, passou a dissecar a sexualidade humana em todos os seus aspectos. O saber legitimados com o qual os médicos (principalmente) passaram a ser investidos com relação a questões sexuais, ainda que fruto de processos anteriores, teve no XIX uma força e virulência que impressionam o observador do século XX, dados os extremos de crueldade atingidos – a par de toda uma tradição de normatização do sexo pela violência.

Declarando perversas todas as práticas e expressões do impulso sexual que não atendesse à única finalidade “natural” da procriação, lidando com categorias de perversão e perversidade – como Krafft-Ebing – combatendo a masturbação – como Havelock Ellis e cortes de outros colegas seus -, médicos e estudiosos da sexualidade esforçaram-se por nomear, controlar e higienizar a sexualidade, freqüentemente em nome de um ideal nacional, segundo o qual o “desvio” sexual não só prejudicava o indivíduo, mas também fazia com que se debilitasse a nação. É por isso que a emergente sexologia de Krafft-Ebing tinha como objetivo primordial estudar os comportamentos sexuais desviantes, e não a norma, pois, entendidos dessa forma, os atos sexuais eram trazidos para a esfera pública.

Havia um consenso médico, de forma alguma absoluta, mas ainda assim predominante, que via no apetite sexual feminino um sintoma de distúrbio ou doença mental. No Brasil o discurso médico aliado de uma classe industrial tentava apropriar-se da infância e da mulher para controlar e impedir “desvios” morais, programando que o espaço da criança era a escola e o da mulher, o lar. É sempre bom lembrar que as práticas eróticas foram lidas segundo as classificações das “perversões sexuais” elaboradas pelo médico vienense Richard von Krafft-Ebing, em meados do século XIX, onde a busca do prazer sexual foi fortemente condenado.

Desde Foucault que este discurso, instituídos das referências modernas sobre a sexualidade, é severo, moralista e sexista. Para os médicos do século passado, o desejo sexual era visto como força ameaçadora, vulcânica, destrutiva que deveria ser combatida e bem administrada pelo intelecto. A relação sexual deveria ser reprimida para que se evitasse a perda desnecessária do sêmen masculino. Obcecados com a sexualidade, voyeuristas disfarçados, os homens da ciência falaram ininterruptamente da sexualidade desde o século XIX, principalmente para normatizá-la. Dissecaram o corpo da meretriz, do cafetão, do homossexual, “perverteram o sexo”. Todas as práticas sexuais foram postas sob o signo do discurso científico, analisadas, classificadas, contidas e condenadas. Mas todas ganharam ampla visibilidade. A ciência domou o sexo, com medo de ser dominado.

A historiadora Ana Paula Vosne Martins em seu livro “Visões do Feminino – a medicina da mulher nos séculos XIX e XX” (Editora Fiocruz) mostra como o estudo do corpo feminino pelo saber médico colaborou para o aprisionamento da mulher ao determinar seu papel na sociedade pelas características corporais, reprodutivas e sexuais. Para ela, a mulher do século XXI continua prisioneira do corpo, submetendo-se a intervenções médicas como plásticas e silicones, seguindo à risca as cartilhas da saúde e da beleza. Trata-se de uma versão mais moderna de controle da autonomia feminina.

Ao estudar a produção cultural masculina sobre o feminino no século XIX e começo do século XX, Ana Paula percebeu o quanto a diferença feminina constituía um problema para aqueles homens cultos. Primeiro, o mistério – criaturas misteriosas despertam fascínio, mas também medo. Esta cura de mistério, criada pelo desejo de conhecer e de possuir ao mesmo tempo, é um dos elementos fundamentais para se entender a imagem ambígua da mulher que oscila entre mãe nutridora e amorosa e a mulher fatal. Essa ambigüidade não se restringe às páginas dos livros e jornais ou obras artísticas, mas extravasa para a vida social, participando de uma construção social que inferioriza e as exclui as mulheres, pois as imagens da normalidade e da anormalidade são como o positivo e o negativo de uma fotografia. Adorada ou temida, enaltecida ou execrada, a mulher permanecia o outro, por excelência, da cultura ocidental.

O controle social continua a ser a principal semelhança entre a mulher – corpo do século XIX e a mulher corpo de hoje. As do passado estavam presas a vertas “verdades” sobre seus corpos, como a fragilidade e o perigo para a sua saúde física, e, principalmente, mental caso ousassem romper com estas verdades. Hoje o controle sobre as mulheres está embalado no pacote da saúde, da beleza, da juventude, do dinamismo, enfim, do bem-estar fotogênico que consumimos todos os dias. A indústria da beleza, com toda a sua diversidade, também afeta os homens, mas as mulheres estão na sua origem e continuam a ser o alvo privilegiado. Hoje, não basta ser uma boa profissional, ser competente no que faz, ter seu espaço e ser respeitada pelo que é. Se você não for tudo isso e mais uma milhão de outras coisas relacionadas ao que você aparenta, então não será percebida e, na nossa cultura visual, isso pode ser um problema, uma fonte de frustração e de amargura. Enquanto as mulheres do século XIX estavam presas aos limites do corpo (limite estes criados pelos homens de ciência e de medicina), as mulheres dos séculos XX e XXI estão presas à imagem de um corpo jovem, magro, plástico, bem vestido, pronto para a Câmera que aprisiona.

Um comentário:

Dr. Archimedes de Sá Freire Filho disse...

caro amigo Gutemberg, adorei seu texto, mas no trecho: "Enquanto as mulheres do século XIX estavam presas aos limites do corpo (limite estes criados pelos homens de ciência e de medicina), as mulheres dos séculos XX e XXI estão presas à imagem de um corpo jovem, magro, plástico, bem vestido, pronto para a Câmera que aprisiona." Entendemos também que esses limites foram construidos pelos representantes legais da igreja Católica;

"Os Hebreus... O cristianismo iniciou uma repressão compulsória contra a liberdade sexual. Eram monoteístas e tinham um código religioso (o Decálogo) que era também um código moral, daí a essência da visão judaica sobre sexo - "a procriação seria a razão básica para o relacionamento sexual". Os judeus condenavam a prostituição e a infidelidade, que eram punidas como o apedrejamento.
No final do século III, a igreja já estava bem sedimentada e organizada, sendo portanto uma esperança de unificação do Império. Uma religião que resistiu a três séculos de perseguições e se mantinha viva, cada vez mais forte...seguiria em frente, com certeza!!!

Logo após .....a Idade Média, período de consolidação das culpas, dos pecados e das proibições. Marcada por fortes contradições dentro da Igreja, pois esta era, ao mesmo tempo, a mentora das Cruzadas - onde se matava em nome de Deus - e uma religião de desprendimento e amor. A Igreja detinha o poder religioso e disputava o temporal de todos os modos. Se um homem quisesse estudar tinha que se tornar padre. A sexualidade era reprimida aos excessos... um tempo confuso no âmbito sexual.

Enfim o Renascimento....O século XV....Florença.....Nesse momento o homem passa a pensar em si mesmo como indivíuo e a aceitar como naturais seus desejos, persepções e impulsos. "O homem é a medida de todas as coisas". Vem o declínio da espiritualidade...Muitos "Papas" transgrediram as muralhas da moral e os votos do celibato, prevaricaram mais e mais, no silêncio de um desejo insaciável... O papa Alexandre VI, era pai de, pelo menos, cinco filhos ilegítimos, dentre eles Lucrécia Bórgia e César Bórgia. Bórdéis tinham a autorização da Igreja, a liberdade sexual retomara seu lugar entre a sociedade da época. O papa Paulo III também tinha um filho. Júlio II teve três filhos ilegítimos e fundou um bordéu em Roma, no início do século XVI. Para a construção da Igreja de São Pedro, foram vendidas indulgências, ou seja, a remissão da punição dos pecados. Foi quando o padre Martinho Lutero lidera a Reforma Protestante, separando-se da Igreja Católica. Um grito de "basta" em meio a tanta fornicação dos representantes legítimos da Igreja Católica."

Trechos do Livro - O Prazer e o Pensar, 1999 Vol 1 - Marcos Ribeiro.

Talvez, os homens da ciência e da medicina, tenham tido uma avaliação contaminada por conta da grande eficiência dos homens, ou melhor dizendo, dos representantes legais da palavra de Deus; os sacerdotes do Catolicismo, que emanavam o mêdo e o pecado, a culpa e a não salvação, pragas e maleficências aos que discordassem do olhar pervertido à busca do prazer sexual. Principalmente quando esse sentimento de prazer fosse percebido ou fantasiado pelas mulheres oprimidas desse século. As ciências médicas e todas as outras ciências, estariam em seus ensinamentos, represadas nas mãos dessa igreja que espalhava o mêdo e a culpa em prol de um controle sócio-econômico.
Talvez, os pobres colegas das artes médicas e sociais, estivessem enclausurados nessa sombria névoa de controle e estagnação, que por muitos séculos esteve ofuscando a ciência e impossibilitando o livre discurso sobre as coisas da sexualidade.
De certo, o mesmo Foucault, também analiticamente disserta sobre o sexo nos meados do séc XVII, e sobre o controle da Pastoral sobre o mesmo: "O sexo segundo a nova pastoral, não deve mais ser mencionado sem prudência; mas seus aspectos, suas correlações, seus efeitos devem ser seguidos até as mais finas ramificações: uma sombra num devaneio, uma imagem expulsa com demasiada lentidão, uma cumplicidade mal afastada entre a mecânica do corpo e a complacência do espírito: tudo deve ser dito."

Talvez caro amigo Gutemberg, tanto a ciência médica quato a social, tenham sido por muitos séculos, prisioneiras de um mesmo algoz. Mas, certamente de tudo e de todos, as mulheres foram as mais torturadas durante esses séculos; impedidas de vivenciar o prazer sexual como um sentimento puro e natural, inerente ao ser humano.

Archimedes