13 dezembro 2006

Besouro, o homem mais valente do Recôncavo


A história dos grandes capoeiras, vive até nossos dias, na imaginação popular e cantigas que narram suas façanhas. Em Salvador por volta de 1920 a polícia perseguia não só as rodas de capoeira, mas também o samba e o candomblé. Nessa mesma época surge em Santo Amaro, Besouro Mangangá ou Besouro Cordão de Ouro, que foi um dos maiores capoeiristas da Bahia e um dos mais admirados e citados em canções nas rodas de capoeira. Manoel Henrique Pereira, homem negro e pobre, nascido no fim do século XIX, numa época em que ser praticante de atividades ligadas à herança africana era considerado um crime, se tornou a figura mais respeitada no universo da capoeira. Sua fama cruzou os limites do Recôncavo, chegou à capital baiana, ao restante do país e alcançou os quatro cantos do mundo.

Capoeirista corajoso num tempo em que não havia a divisão entre os estilos angola e regional, muito menos escolas de ensino da arte-luta, Besouro Cordão de Ouro – como também era conhecido – conseguiu a façanha de hoje ser um herói tanto para os seguidores do mestre Bimba (criador da regional), quanto para os discípulos do mestre Pastinha (líder máximo da capoeira angola). Mais impressionante ainda: teve menos de 30 anos de vida para construir toda essa fama, antes de ser assassinado em 1924.

Hoje, não há nome mais cantado nas rodas de capoeira. Besouro inspirou a música “Lapinha”, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, vencedora do Festival de Música da TV Record, na voz da cantora Elis Regina. Serviu de fonte também para um dos capítulos do livro “Mar Morto”, de Jorge Amado, e para o filme “Besouro Capoeirista”, com o ator baiano Mário Gusmão. A mesma coragem e valentia lembradas nas canções, que o transformaram num herói, fizeram com que, em vida, tivesse fama de arruaceiro e fosse perseguido pela polícia em inúmeras ocasiões.

Justiceiro para uns, arruaceiro para outros, o exímio capoeirista virou lenda com a alcunha de Besouro Mangangá. Ele foi uma espécie de Lampião da capoeira, e sua valentia correu mundo. Saveirista, vaqueiro, amansador de burro brabo, chegou a ser soldado do Exército. Sua personalidade permanece envolta em mistério, fortalecendo ainda mais o mito em torno de seu nome. Sua certidão de nascimento nunca foi encontrada, nem documentos de identidade. Também não há qualquer imagem – seja fotografia ou pintura – dele. Besouro não deixou filhos conhecidos nem mulher. Houve até quem desconfiasse de sua existência.

Ele nasceu no antigo quilombo Urupy, localizado entre Santo Amaro e o distrito Oliveira dos Campinhos, filho de João Matos Pereira e Maria Auta Pereira. Aos 13 anos ganhou o mundo quando saiu de casa para trabalhar e começou a escrever seu nome na história através de suas aventuras. Seu forte era a agilidade, destreza, manha, rapidez de raciocínio, a calma e a surpresa. Muitas crianças, mesmo a contragosto dos pais, se apaixonavam por aquele homem do povo e seus movimentos perfeitos.

Seu jeito crônico de brigar, cheio de malandragem e sorrisos de provocação irritava a polícia. Suas fugas espetaculares ajudaram a criar o apelido: Mangangá também é o nome popular de um peixe venenoso. Já o apelido Cordão de Ouro teria surgido muito tempo depois, quando passou a haver a gradação de capoeiristas através da cor do cordão. O cordão de ouro sereia superior a qualquer outro nível de capoeira.

Besouro se saía tão bem das situações de perigo que as pessoas acreditavam que ele possuía poderes sobrenaturais. Muitos falavam que ele tinha o corpo fechado. O próprio apelido vinha dessa crença: quando ele se encontrava numa situação difícil, diante dos inimigos numerosos demais, Manoel se transformava em besouro e saía voando. Besouro vivia num mundo em que, para sobreviver, era preciso ter malícia dentro e fora da roda da capoeira.

As brigas eram sucessivas e por muitas vezes Besouro tomou partido dos fracos contra os proprietários de fazendas, engenhos e policiais. Certa vez estava sem trabalho e foi a Usina Colônia, hoje Santa Elisa. Deram-lhe trabalho. Trabalhou uma semana. Quando foi no dia do pagamento ele sabia que o patrão tinha o hábito de chamar o trabalhador uma vez, e na segunda dizia: "quebrou para São Caetano", que quer dizer: não recebe mais; e se reclamasse era chicoteado e ficava preso no tronco de madeira e depois mandado embora. No dia do pagamento, deixou que o patrão o chamasse duas vezes sem responder. O patrão disse o seu quebrou para São Caetano. Todos receberam o dinheiro menos Besouro. Besouro invadiu então a casa do homem, pegou-lhe pelo cavanhaque e obrigou que pagassem seu dinheiro. Besouro tomou o dinheiro e foi embora.

No dia 08 de julho de 1924 Besouro se despedia da vida de valentão com apenas 28 anos. Foi em Maracangalha quando foi golpeado com uma faca de ticum, (a árvore dos mistérios), à traição, por um de seus colegas. Somente uma arma de mandioca poderia ferir mortalmente quem tem o corpo fechado. Sua história foi construída em menos de três décadas mas até hoje alimenta a fantasia do povo de Santo Amaro, onde nasceu. Nas palavras inspiradas de Jorge Amado, “Besouro brilha no céu, é uma estrela”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Apenas os abnegados pesquisadores da cultura africana e suas raízes no Brasil, em particular na Bahia, pelo fato de ser o estado da federação onde os escravos se fizeram presente em quantidade significativa, se apropriam de maneira tão forte das histórias e relatos a respeito da resistência negra na preservação da sua cultura.
Confesso que quando garoto jogava capoeira e participei do grupo folclórico filhas de Obá (da saudosa D. Augusta) na condição de capoeirista; lembro-me quando cantávamos a musica...

Quando eu morrer
Me enterre na lapinha
Quando eu morrer
Me enterre na lapinha
Calça culote palito almofadinha
Calça culote palito almofadinha
Adeus Bahia zum zum zum cordão de ouro
Eu vou partir porque mataram meu besouro
Ê zum zum
Cordão de ouro,
Ê zum zum,
Cordão de ouro...

O quão é gratificante poder tomar conhecimento de parte da história desse herói negro que tem seu nome cantado em versos e prosas da sua cultura, sacramentado agora com o lançamento do filme sobre sua vida.

Rubem Tadeu
rstfilho@gmail.com.br