28 maio 2019

Entre música e poesia, harmonia (2)


Há um antigo dilema entre poesia e letra de canção. Enquanto a maioria das canções fala de amor, a poesia atual aborda uma faixa bem mais ampla de assuntos. Os poetas contemporâneos optam pelo verso livre e pelas formas abertas, as letras continuam se valendo de metro, rima, estrofe, refrão, ferramentas a que a poesia hoje mal recorre, ou utiliza em circunstâncias especiais. O articulador da Folha de S.Paulo, Nelson Archer já abordou com maestria o tema. Para ele, depois de João Cabral, a produção nacional perdeu popularidade e isso coincidiu com duas décadas e meia de apogeu da MPB (1960/85), quando a inteligência local achou um jeito de converter uma arte considerada menor no veículo dos principais debates da época. “A poesia escrita eclipou-se parcialmente entre nós à medida que a cantada chegava ao centro do palco”, escreveu. Assim, o reconhecimento das realizações de duas outras gerações de letrista foi adiado.

 


Tanto a música como a poesia são artes que se organizam no tempo, diferentemente da pintura e escultura que o fazem no espaço, e o cinema e o teatro que o fazem nos dois. A prosa (o romance e o conto) também se organiza no tempo. As duas são registradas por meio da escrita, mas devem ser executadas como som (exceto e poesia concreta, cuja revolução foi assimilar formas expressivas das artes plásticas). O registro da música se dá pela partitura. Essa registra o ritmo e a melodia. O ritmo diz respeito à acentuação das notas por compasso. A melodia diz respeito à sequência de notas tocadas, como dó, ré, mi e fá, por exemplo. São esses elementos básicos que se encontram descritos numa partitura. Na música moderna, o ritmo pode ser irregular, e a melodia ter grandes variações.



Na poesia, o ritmo também está registrado, não por notas, mas por sílabas átonas e tônicas. E como na música, a regularidade do poema também é construída por eles. E como o compasso da música, a poesia também tem uma unidade: o verso. E nela, as pausas também têm seus símbolos: ponto, vírgula e ponto e vírgula, que também diferem em duração. A escolha das palavras é necessariamente uma escolha de sílabas, que por sua vez, carrega em si a escolha de vogais e consoantes: fonemas. Assim, na música, a melodia e o ritmo são registrados, enquanto o timbre e o andamento fazem-se na execução, dependendo do intérprete, do instrumento, e assim por diante. Na poesia, o ritmo e o timbre são registrados, enquanto a melodia e o andamento fazem-se na execução, dependendo também do intérprete.

 


Para Paul Valéry, a prosa e poesia, “servem-se das mesmas palavras, da mesma sintaxe, das mesmas formas e dos mesmos sons ou timbres, mas coordenados e excitados, distinguindo-se, portanto, através da diferença de certas ligações feitas e desfeitas em nosso organismo psíquico e nervoso, enquanto os elementos desse modo de funcionamento são idênticos”. “A prosa utiliza-se da linguagem útil, isto é, a linguagem que serve para o homem atingir seus objetivos; ou seja, para ser compreendida; quando isso ocorre, ela transforma-se em algo totalmente diferente. Entretanto, no poema, é feito expressamente para reviver e vir a ser indefinidamente o que acabou de ser, ou seja, reconhece-se por esta propriedade: ela tende a fazer reproduzir em sua forma: ela nos excita e reconstituí-la identicamente”. Sendo assim, poema utiliza-se da linguagem como um fim em si mesma, procurando exprimir um ideal, um estado de alma:



“A tarefa do poeta – diz Valéry - é nos dar a sensação de união íntima entre a palavra e o espírito, o que resulta no maravilhoso, na magia, agindo em nós como um acorde musical. A impressão produzida depende da ressonância, do ritmo, do número dessas sílabas, mas resulta da simples aproximação dos significados”. Fernando Pessoa, em Ricardo Reis, diz que a poesia é "música que se faz com ideias”, enquanto Mallarmé afirma que "se faz com palavras, não com ideias". Para Antonio, “a poesia se faz com palavras-ideias e com ideias-palavras. O que Mallarmé quer excluir é a tese de que a ideia separada da palavra seja suficiente para fazer poesia”.




Procura da Poesia (Carlos Drummond de Andrade)



Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.



Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.

Nem me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.



Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.



O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.



Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.



Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.



Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intata.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.



Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?



Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

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