08 agosto 2007

Cinco fases de Gilberto Gil -1967/1987 (3)

A terceira fase do artista é o período de afirmação do movimento tropicalista coincide com um dos momentos mais conturbados da história política brasileira. Em dezembro de 1968, o Ato Institucional Número Cinco põe o Congresso em recesso e decreta outras medidas de exceção. Setores da esquerda desencadeiam ações armadas. O cerceamento das liberdades atinge também o campo artístico. A rebeldia tropicalista é fortemente golpeada com a prisão de Gil e Caetano. Depois de três meses de cárcere no Rio de Janeiro, os dois são confinados em Salvador, de onde saem, para o exílio em Londres. É nesse período que está a terceira fase, a posterior ao exílio, em que Gil faz a reavaliação dos seus caminhos até a descoberta da negritude.

Todos esses acontecimentos de golpe, prisão, despertam em Gil uma for postura mística, que se materializa no recurso radical à alimentação macrobiótica e num culto sincrético a Cristo, Xangô e Krishna. Em 1969, Gil e Caetano se vêem forçados a abandonar o Brasil, indo morar em Londres. Antes de sair, Gil lança um dos seus maiores sucessos na época, “Aquele Abraço”, a música despedida, um hino vital de amor ao Rio e à vida, um samba de partido alto. Gil se despediu com este agitado samba de partido alto, no qual afirma que “meu caminho pelo mundo, eu mesmo traço” e, ainda, “quem sabe de mim sou eu”, Aquele Abraço serve para mostrar também, que, se quisesse, Gil seria um excelente sambista.

“O Rio de Janeiro continua lindo/o Rio de Janeiro continua sendo/o Rio de Janeiro, fevereiro e março//Alô, alô, Realengo - aquele abraço!/alô, torcida do Flamengo - aquele abraço!/Chacrinha continua balançando a pança/e buzinando a moça e comandando a massa/e continua dando as ordens no terreiro//Alô, alô, seu Chacrinha - velho guerreiro/alô, alô, Terezinha, Rio de Janeiro/alô, alô, seu Chacrinha - velho palhaço/alô, alô, Terezinha - aquele abraço!//Alô, moça da favela - aquele abraço!/todo mundo da Portela - aquele abraço!/todo mês de fevereiro - aquele passo!/alô, Banda de Ipanema - aquele abraço!//Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço/a Bahia já me deu régua e compasso/quem sabe de mim sou eu - aquele abraço!/pra você que meu esqueceu - aquele abraço!//Alô, Rio de Janeiro - aquele abraço!/Todo o povo brasileiro - aquele abraço!” (Aquele Abraço)

De volta ao Brasil, em 1972, Gil grava o disco “Expresso 2222”, grande sucesso de público. “Expresso 222” é uma composição que reflete seu aprendizado londrino. Mostra um Gil conseguindo imprimir à poesia um ritmo interior que é valorizado por sua interpretação vocal, onde se percebe a influência da técnica de cantores ingleses e americanos. Gil narrou sua viagem num trem muito especial que “parte direto de Bonsucesso para depois”, sobre um trilho, “que é feito um brilho”, confirmando sua maestria em buscar a comparação nova, a imagem inesquecível. Foi com “Expresso 2222” que Gil promoveu uma revolução na maneira de usar o instrumento – revolução tão importante quanto a promovida por João Gilberto no início da Bossa Nova.

“Começou a circular o Expresso 2222/que parte direto de Bonsucesso pra depois/começou a circular o Expresso 2222/da Central do Brasil/que parte direto de Bonsucesso/pra depois do ano 2000//Dizem que tem muita gente de agora/se adiantando, partindo pra lá/pra 2001 e 2 e tempo afora/até onde essa estrada do tempo vai dar/do tempo vai dar/do tempo vai dar, menina, do tempo vai//Segundo quem já andou no Expresso/lá pelo ano 2000 fica a tal/estação final do percurso-vida/na terra-mãe concebida/de vento, de fogo, de água e sal/de água e sal/de água e sal/ô, menina, de água e sal//Dizem que parece o bonde do morro/do Corcovado daqui/só que não se pega e entra e senta e anda/o trilho é feito um brilho que não tem fim/oi, que não tem fim/que não tem fim/ô, menina, que não tem fim//Nunca se chega no Cristo concreto/de matéria ou qualquer coisa real/depois de 2001 e 2 e tempo afora/o Cristo é como quem foi visto subindo ao céu/subindo ao céu/num véu de nuvem brilhante subindo ao céu” (Expresso 2222)

Depois de gravar o antológico disco em parceria com Jorge Bem, Gil lança em 1975, “Refazenda”, o primeiro da trilogia “re”, com um som basicamente acústico. Refazenda assinala tranqüila maturidade. É a busca do equilíbrio, do auto-conhecimento, a volta ecológica à natureza (sair da vanguarda para a retaguarda, se recolher às raízes), impregnada pela serenidade zen. Sua grande viagem ao ego interior surge de forma explícita na canção “Retiros Espirituais”.

“Nos meus retiros espirituais/descubro certas coisas tão normais/como estar defronte de uma coisa e ficar/horas a fio com ela/Bárbara, bela, tela de TV/você há de achar gozado/Barbarela dita assim dessa maneira/brincadeira sem nexo/que gente maluca gosta de fazer//Eu diria mais, tudo não passa/dos espirituais sinais iniciais desta canção/retirar tudo o que eu disse/reticenciar que eu juro/censurar ninguém se atreve/é tão bom sonhar contigo, ó/luar tão cândido//Nos meus retiros espirituais/descubro certas coisas anormais/como alguns instantes vacilantes e só/só com você e comigo/pouco faltando, devendo chegar/um momento novo/vento devastando como um sonho/sobre a destruição de tudo/que gente maluca gosta de sonhar//Eu diria, sonhar com você jaz/nos espirituais sinais iniciais desta canção/retirar tudo que eu disse/reticenciar que eu juro/censurar ninguém se atreve/é tão bom sonhar contigo, ó/luar tão cândido//Nos meus retiros espirituais/descubro certas coisas tão banais/como ter problemas ser o mesmo que não/resolver tê-los é ter/resolver ignorá-los é ter/você há de achar gozado/ter que resolver de ambos os lados/de minha equação/que gente maluca tem que resolver/eu diria, o problema se reduz/aos espirituais sinais iniciais desta canção/retirar tudo que eu disse/reticenciar que eu juro/censurar ninguém se atreve/é tão bom sonhar contigo, ó/luar tão cândido” (Retiros espirituais)

Ao mesmo tempo Gil começa a cutucar um tema tabu. Em “Pai e Mãe”, as figuras masculina e feminina começavam a perder a nitidez de seus contornos tradicionais. Detrás da rústica simplicidade e da densa poesia, Gil continua seu jogo sutil com incógnitas, ambigüidades e surpresas. Ainda no disco “Refazenda”, um trabalho de Gil em parceria com o acordeonista Dominguinhos, “Lamento Sertanejo”. Nesse trabalho, Gil mostra que é possível fazer música essencialmente brasileira com as mais variadas técnicas.

“Por ser de lá/do sertão, lá do cerrado/lá do interior do mato/da caatinga do roçado./eu quase não saio/eu quase não tenho amigos/eu quase que não consigo/ficar na cidade sem viver contrariado.//Por ser de lá/na certa por isso mesmo/não gosto de cama mole/não sei comer sem torresmo./eu quase não falo/eu quase não sei de nada/sou como rês desgarrada/nessa multidão boiada caminhando a esmo” (Lamento Sertanejo)

Também de grande movimentação na vida do artista e do cidadão Gil se mostra em 1976. Musicalmente, o fato mais significativo é sua participação com Caetano, Bethânia e Gal no conjunto Doces Bárbaros, um reencontro atualizado do grupo baiano. No início de 1977, Gil participa do Festival de Arte Negra da Nigéria e o contato direto com a cultura africana dá origem ao show e ao disco “Refavela”. No disco “Refavela”, três preciosidades. Gil canta a negritude em “Babá Alápalá” e “Refavela” e a outra, suave, ele diz que “o melhor lugar do mundo é aqui, e agora” na canção “Aqui e Agora”.

“Iaiá, kiriê, kiriê, iaiá//A refavela/revela aquela/que desce o morro e vem transar/o ambiente/efervescente/de uma cidade a cintilar//A refavela/revela o salto/que o preto pobre tenta dar/quando se arranca/do seu barraco/prum bloco do BNH//A refavela, a refavela, ó/como é tão bela, como é tão bela, ó//A refavela/revela a escola/de samba paradoxal/brasileirinho/pelo sotaque/mas de língua internacional//A refavela/revela o passo/com que caminha a geração/do black jovem/do black-Rio/da nova dança no salão//Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá//A refavela/revela o choque/entre a favela-inferno e o céu/baby-blue-rock/sobre a cabeça/de um povo-chocolate-e-mel//A refavela/revela o sonho/de minha alma, meu coração/de minha gente/minha semente/preta Maria, Zé, João//A refavela, a refavela, ó/como é tão bela, como é tão bela, ó//A refavela/alegoria/elegia, alegria e dor/rico brinquedo/de samba-enredo/sobre medo, segredo e amor//A refavela/Batuque puro/de samba duro de marfim/marfim da costa/de uma Nigéri/miséria, roupa de cetim//Iaiá, kiriê, kiriê, iáiá” (Refavela)

Já o disco Realce fecha o ciclo com a luz e todas as cores, a luz refratada, dissociada em todas as suas miríades: o arco-íris.

Um comentário:

Anônimo disse...

Meus parabéns ficou muito bom