Na opinião do crítico Luiz Carlos Merten, Cronenberg é um visionário. Fez filmes para superar o horror da degradação física e da monstruosidade que vê no outro. Seu tema é a mutilação provocada pela natureza monstruosa do homem. Em Crash, ele aplica esse tema à máquina, à fascinação do homem moderno pelos carros, tratados como verdadeiros mitos. Representam potência, não sendo por acaso que a propaganda explora muito essa identificação entre potência (sexual) e arranque do motor. Só que Cronenberg expõe uma excitação sensual próxima da morte.
Do mesmo modo, em Crash, as pessoas se divertem ao recriar carros de semi-deuses (James Dean) esmagados nessas máquinas, porque os carros são totens da vida moderna. É dessa experiência que nasce a excitação sexual próxima da morte, porque a velocidade da máquina (libertadora) reproduz o ritmo vital de quem está no comando e tem o poder de vida ou morte sobre o passageiro. Daí o gozo onipotente (e amoral) dos masturbadores de Cronenberg.
O cineasta – analisou o crítico do Estadão, Antonio Gonçalves Filho – está atento para as grandes mudanças que forjam o homem do século 21. A principal delas, obviamente, no campo do erotismo. O que antes era celebração vital (sexo), hoje significa a morte (um vírus mutante como o da aids, por exemplo). A degradação é irremediável para os heróis de Cronenberg, submetidos a uma nova ordem sexual ditada pelo medo do ‘outro’. Em nenhuma outra época houve tantas lojas de carros e sex shops, templos de solitários mutilados em busca de prótese para as pernas e outros membros. Em todo caso, Cronenberg não passa de moralista. Seus personagens são assimétricos, desequilibrados, estão sempre procurando respostas na ciência, sejam eles a mosca de Jeff Goldbum ou os ginecologistas de Gêmeos. Acham que têm direito a uma explicação razoável para sua experiência existencial. E acabam sendo personagens catárticos, mesmo quando vilões, porque se submetem a testes para se livrar da natureza humana. Incômoda, demasiadamente humana”.
Livro e filme não apenas apresentam uma temática polêmica, são os mais visíveis representantes de uma estética da mutilação. Entre seus seguidores estão o dinamarquês Jack Stevenson, colecionador de filmes de antigas campanhas contra o excesso de velocidade que virara cult, o fotógrafo e artista plástico francês Romain Slocombe, que envolve mulheres em bandagem e ataduras para depois fotografá-las como se estivessem feridas e convalescentes. Autor de vários livros – “Broken dolls” (bonecas quebradas) e “L émpire érotique”(sobre o erotismo no Japão), além dos documentos sobre o Japão: “Um monde flottant” (enfocando a fotografia erótica), e “Tokyo love”, sobre os filmes pornôs. “Meu trabalho se relaciona a outras correntes da body art, ligadas ao piercing e à destruição do corpo. Vivemos um momento de falência das ideologias positivas, com as pessoas angustiadas diante de uma virada de século não tão positiva como esperavam. De qualquer forma, minha obra é otimista pois apresento sempre convalescentes. O que me interessa não é o acidente de carro, mas o que acontece depois”- explica o artista. “A imoralidade passiva dessas mulheres é favorecida pelas bandagens. Se estivessem amarradas com uma corda, em vez de passivas pareciam ter sido seqüestradas. Não existe crueldade nisso, mas um sadismo light”.
Nada disso é novo. Esta mistura de crueldade e delicadeza, violência e paz, belo e feio impressionou o escritor Henry Miller em suas incursões japonesa. Para ele, os japoneses – que hoje viraram uma espécie de protótipo futurista – eram o exemplo dessa ambigüidade perfeita na poesia, na pintura e no teatro, onde o objeto de horror pode ser o da beleza e onde o monstruoso e o estético não se chocam.”. O nosso bom e velho Nélson Rodrigues já comentava o assunto. Na história “A desprezada” (episódio de A vida como ela é, exibido pela TV Globo), a bela Maitê Proença só recupera o amor do marido depois de sofrer um acidente de carro e aderir ao look sexy-desastre.
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