29 junho 2010

Relações raciais no Brasil são abordadas no livro Aqui ninguém é branco (2)

MÁSCARA


A segunda parte do livro “Aqui ninguém é branco” da ensaísta Liv Sovik é dividido em quatro ensaios sobre obras musicas populares. A Garota de Ipanema olha em volta: cosmopolitismo e mestiçagem na bossa nova; Um lírio em lamaçal: a atualidade de Angela Maria; Vozes ouvidas nas Noites do Norte: branco e negro em Caetano Veloso; e A travesti, o mediador e o cidadão: identidades brancas na música popular atual.


“Na música popular, o negro tem mais espaço do que em outros campos da cultura de massa, como na telenovela, e acontece um fato que parece contradizer a regra da autoridade branca: a existência de cantor ou cantora branca que se identifica com negros ou valoriza particularmente a negritude, como Fernanda Abreu, Daniela Mercury, Gabriel o Pensador, Edson Cordeiro, para citar alguns. […] O interesse pelo fenômeno não é o de desmascará-lo, denunciando a branquitude essencial que está por trás. É de examinar as diversas posturas sobre raça que se encontram na música popular, posturas de brancos em um ambiente onde a regra da beleza branca não vale. Em uma sociedade marcada pela miscigenação, os discursos desses artistas constituem alternativas imaginárias disponíveis aos brancos, em sua relação com a cultura negra e, até, com negros”.Escreveu a ensaista no último ensaio, marcado pelo olhar na obra musical de Daniela Mercury:


“Desde o início de sua carreira, Daniela Mercury vive no limiar entre o branco e o negro. Fez sucesso com músicas de blocos afro-baianos e com a música ´O swing da cor´, de Luciano Gomes, em seu disco de estreia, Daniela Mercury, de 1991. A letra da música narra um jogo de sedução e paixão e revela, no final, que quem fala tem nome africano: ´Eu sou Muzenza larauê´. Depois, cantou, no CD O canto da cidade, de 1992, uma música homônima de grande sucesso, composta por ela e Tote Gira e reconhecível pelo coro: ´A cor dessa cidade sou eu/O canto desa cidade é meu´. A cidade a qual se refere é Salvador, a Roma Negra. […] Mais tarde, Daniela se posiciona como branca. Na capa de seu CD Feijão com arroz (1997), ela assume o papel do arroz e abraça uma figura negra. A metáfora da atração sexual inter-racial, que é tradicional na valorização da mestiçagem da população, reserva uma surpresa: as costas negras que Daniela abraça na capa se revelam as de uma mulher negra na contracapa, deslocando a questão de identidade de raça para gênero, o que não é incomum”.


Além de abordar a relação da cantora com a cultura e organizações afro-baianas, a ensaísta apresenta mais um ator: o governo do Estado da Bahia (“cujos dirigentes são em sua vasta maioria brancos”) que desde final da década de 80 promove a Bahia como celeiro da cultura nacional. “As autoridades não só valorizam, por vezes cooptam ou constrangem movimentos político-culturais negros que tinham, em certo momento, uma força e independência políticas que pressionavam o poder branco, resistindo, por exemplo, aos planos de tornar mais turísticos os resquícios da história colonial e escravista do bairro do Pelourinho, deslocando a população pobre e negra. A política cultural oficial foi de apoiar manifestações culturais e controlar ambições políticas”.


Mais adiante Liv Sovik informa: “Daniela apoiou dede cedo a valorização da cultura negra […] abraçou a cultura musical negra de Salvador e a devolveu, falando com orgulho na primeira pessoa do singular, acrescentando seu prestígio de estrela pop branca […] Ela representa menos uma mediação da cultura negra por uma branca, do que a carnavalização da própria mediação. Daniela se fantasia, usa máscara, finge ser o que não é” […] Mas fora do palco ela se diz ´a branquinha mais negrinha do Brasil´ e pessoas como João Jorge cobram uma efetividade das palavras, o cumprimento de um dever cidadão, depois de Daniela tirar a fantasia. No teatro do social, ela conseguiu se apropriar da herança afro-baiana; ela não é somente mais uma versão brasileira de blackface, como Jô Sores fazia não há muito tempo na televisão, mas tem outras contas a prestar”.


TRADUÇÃO


Nascida em Genebra, educada nos Estados Unidos, morou na Inglaterra, fez doutorado em São Paulo, trabalhou por meia década em Salvador e é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A professora ficou conhecida na academia brasileira por organizar o livro “Da diáspora, identidades e mediações culturais” (Editora UFMG, 2003), de Stuart Hall. Liv Sovik é uma viajante que observa em sua volta. “É esta pesquisadora que se propõe a tarefa de traduzir a noção de afrobaianidade, uma perspectiva de convivência racial radicalmente inclusiva. Liv, tradutora exímia, diante desse obstáculo, acerta no alvo. Invertendo as expectativas dos trabalhos acadêmicos sobre o tema, escolhe se colocar a pergunta: ´onde está o branco?´. Define como seu campo privilegiado de observação a MPB, território de embate entre o clichê e a inovação”, revelou Heloisa Buarque de Hollanda na orelha da obra.



As reflexões de Liv podem ser discutidas, analisadas, debatidas, e isso é saudável. Ao evidenciar o consenso favorável de historiadores e críticos em torno da bossa nova, Liv Sovik coloca-se como voz dissonante (ao lado de Tinhorão) para desvendar a “aparente branquitude mundial da bossa nova”, em seu cosmopolitismo cool de classe média. A moça do corpo dourado do sol de Ipanema é devidamente setorizada (“branco-mestiça”), tornando-se o ícone do “ideal bossa-novista de homens e mulheres lindas e quase-brancas”. Para a autora, “repensar a tradição cosmopolita brasileira, sem nostalgia pelas relações sociais do passado, significa dar as costas para a contraluz em que vemos a Garota de Ipanema, pois é essa luz sublime, praiana, que ofusca as relações de poder, marcadas pela desigualdade econômica, de gênero e racial”. “Garota de Ipanema” pode ser considerada um dos maiores standards do século XX. Já foi e continua sendo gravada por tanta gente. Oficialmente teria perto de 350 gravações, mas o número real deve estar perto do dobro disso, considerando-se as versões não autorizadas que vivem sendo feitas. Frank Sinatra a gravou, Floyd the Barber, o cantor de rap também. Quanto ao número de execuções da canção, segundo dados oficiais, “Garota de Ipanema” rivaliza com “Yesterday”, de Lennon & McCartney, as duas ultrapassando a casa dos 5 milhões. É bom lembrar que a música abordada foi composta em 1962, outro momento histórico bem diferente hoje.


“Leitura obrigatória para os que não se deixam iludir pelas reelaborações, em curso, de velhas teses e mitos que sempre se prestaram à manutenção de privilégios ou ao ocultamento de exclusões raciais” sustenta o texto de quarta capa de Sueli Carneiro. Agora, é preciso que esse fraseado talentoso, crítico e original da ensaísta Liv circule dentro e fora da universidade (“torre de marfim”), pois seu tom dissonante carrega um fraseado significante para levar o leitor a enxergar com olhos livres sua invisibilidade invisível. O debate está aberto.


DESPRECONCEITUOSAMENTE


Compositor de música popular brasileira, instrumentista e cantor, Mateus Aleluia é remanescente do grupo vocal ‘Os Tincoãs’, com trabalho registrado em disco, na década de 70/80, sendo Mateus um dos condutores do perfil artístico e ideológico do grupo. Apreciado pelos simpatizantes da música cultural baiana, constatou-se no grupo a influência africana através dos cantos e ritmos das senzalas e dos momentos ritualísticos, um sincretismo cultural-religioso bem patente em algumas das suas obras registradas. E para encerrar, eis a letra da composição de Mateus Aleluia,”Despreconceituosamente” do seu recente CD intitulado “Cinco Sentidos”:

Uma voz rouca

Uma violão tão lento, um amor

Um peito acabrunhado, não

Um peito apaixonado, sim

É um passo manso lento

É um passo lento manso, do amor

É um passo manso lento

É um passo lento manso, do amor.


Magoado, não

Bem-vindo, sim

Desesperado, não

Querido, sim

Acabrunhado, não

Apaixonado, sim

Por que não?

Despreconceituosamente

Eu vou vivendo a minha vida

Não me importa a cor da pele

Não me importa a cor da ida

Não me importa a cor da volta

É bonita porque estou

Por favor não feche a porta

Me aceite como eu sou

Eu sou filho da poeira

Sinto o pó em minha volta

Se você me fecha a porta

Sei que o amor ampara-me

Abraçando-me

Sublimando-me

Envolvendo-me, amor

Querendo-me bem


Adorando-me

Abraçando-me

Sublimando-me

Adorando-me, amor

Querendo-me bem

Uma voz rouca.

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Um comentário:

Anônimo disse...

Belíssimo texto!