20 agosto 2019

O cangaço nos quadrinhos (01)


O cangaço está presente em diversas produções culturais: folhetos de cordel, xilogravuras, folclore, romances, música, teatro, cinema, quadrinhos, games, etc. Se a cultura tida como erudita, por meio da literatura regionalista de José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa contribuiu na divulgação, no início dos anos 1960 o cangaço foi veiculado por intelectuais de esquerda como símbolo da revolução social, inspirando filmes do Cinema Novo, artes plásticas e ensaios sociológicos.

Toda essa forte presença em nosso imaginário social só foi divulgada do ponto de vista histórico, fragmentário e esporádico. Não foi diferente nas histórias em quadrinhos da época. Desde a década de 1930 que a saga do cangaço alimenta o mito – na dualidade heroi ou bandido – nos quadrinhos. Assim podemos citar Vida de Lampeão por Euclides Santos, publicada no jornal Noite Ilustrada (agosto a dezembro de 1938); Raimundo, o Cangaceiro, de José Lanzelloti (1953); Cangaceiros (adaptação do livro de José Lins do Rego) de André Le Blanc (1954); Aventuras de Milton Ribeiro o Cangaceiro, de Gedeone Malagola (1957);


Jerônimo, o Herói do Sertão desenhado por Eduardo Rodrigues (1957); Zeferino e Grauna, de Henfil (1967); Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, de Jô Oliveira (1976); O Ataque de Lampião à Mossoró de Emanoel Amaral e Aucides Sales (1988); Mulher Diaba no Rastro de Lampião, escrita por Ataíde Braz e desenhada por Flávio Colin (1994); Homens de Couro de Wilson Vieira (1997); Lampião em Quadrinhos, de Ruben Wanderley Filho (1997); Caatinga, de Hermann (1997); Lampião...Era o cavalo do tempo atrás da besta da vida, de Klévisson (1998); Turma do Xaxado, de Cedraz (1998); Sertão Vermelho, de Haroldo Magno e Edvan Bezerra (2003); Cangaceiros, Homens de Couro, de Wilson Vieira e Eugênio Colonnese (2004); O Cabeleira, de Leandro Assis, Hiroshi Maeda e Allan Alex (2008); Bando de Dois, de Danilo Beyruth (2009); Lucas da Vila de Sant'Anna da Feira, de Marcelo Lima e Hélcio Rogerio (2013)


Este artigo analisa a primeira história em quadrinhos a abordar o cangaço. O pesquisador Durval Muniz de Albuquerque em sua obra A Invenção do Nordeste e outras artes (Cortez/Fundação Joaquim Nabuco, 1999) informou que “o nordestino, assim como o Nordeste, serão dotados de diferentes máscaras dependendo da perspectiva com que são abordados, do regime discursivo em que são inseridos, do momento em que são tematizados”. Para Albuquerque, é dentro da produção cultural e menos no discurso político que se elabora o conceito de região. Assim, ele enumera obras de diversos escritores como representativas desta ideia de Nordeste. O universo das histórias em quadrinhos não foi contemplado em sua pesquisa.


Assim, o Nordeste surge como discurso da esquerda na época da Revolução de 1930 e, principalmente, durante o Estado Novo, como região problema, das camadas sociais vivendo na miséria, das injustiças a que estavam submetidas e das práticas e discursos da revolta popular ocorridas nesse espaço.

Disputa de terras (um tema presente no cangaço) era resolvida entre os próprios fazendeiros. E nessa guerra alguns fazendeiros (tidos como coronéis) começaram a criar seu exército particular.  Eles precisavam de proteção pessoal e para isso contratavam capangas, verdadeiros guardas costas que o acompanhavam nas empreitadas e viagens. Esses jagunços (palavra de origem africana junguzu, da língua Quibundo, significando soldado) tem o mesmo significado da palavra capanga (soldado a serviço de um chefe político). Com o tempo, jagunços descontentes tornaram-se independentes e prestavam serviços a quem lhes pagassem mais. Esses grupos portavam o rifle apoiados nos ombros, semelhante a uma canga (apoio de madeira usado para unir os bois nos trabalhos pesados) e foram denominados cangaceiros. O primeiro deles, Jesuíno Brilhante, recebeu a alcunha de O Cabeleira. Outro que adquiriu fama, Sebastião Pereira, conhecido por Sinhô Pereira. O Governo Federal sugeriu o apoio do bando de Lampião para combater esses e outros rebeldes em troca, concedia-lhe a anistia pelos crimes cometidos.

A representação social do cangaço como sinônimo da violência gratuita do prazer de matar se insere logo nos anos 1930 a partir da oposição entre espaços civilizado e primitivo. Assim a leitura feita é de que o bandido está associado ao mundo atrasado e primitivo. E nesses discursos emerge conteúdo pejorativo (facínora, celerado) e animosidade (fera). A narrativa do cangaço é destituída de qualquer conteúdo social, afirmando apenas como produto de um instinto animalesco.

A leitura dos quadrinhos publicados no jornal A Noite Ilustrada, do Rio de Janeiro, no período de agosto a dezembro de 1938 traça a vida do famoso cangaceiro desde sua infância até sua morte. Com o título de “Vida de Lampeão”, Euclides Santos aproveitou o momento imediato após a morte de Lampião para lançar seus quadrinhos. Dividiu a obra em 20 capítulos. Mesmo não citando a fonte de sua pesquisa narrativa, nota-se a influência das reportagens do jornalista Melchiades da Rocha, publicadas no jornal A Noite e depois transformadas em livro (Bandoleiros das Catingas).

Há sequências de crimes e violências de Lampião e seu bando. E os desenhos acentuam detalhes dos assassinatos ou tiroteios contra os volantes que os perseguiam. Um erro que vai ser reproduzido em diferentes obras significativas sobre o cangaço é o desenhista Euclides Santos colocar cangaceiros montados a cavalo. Sabe-se, por fontes fidedignas, que os cangaceiros não andavam a cavalo e sim a pé.

Mesmo feito às pressas, no calor do tema que estava em evidência no momento da morte de Lampião, ressaltada em jornais, cordéis e noticiário do rádio, é preciso que obras realizadas neste século ressalte as determinações econômicas, políticas e sociais para compreendermos o Nordeste e o fenômeno do cangaço na primeira metade do século XX. A luta entre as famílias Pereiras e Carvalhos foi um dos motivos maiores do acesso de Lampião ao cangaço, e poucos analisam esse fato. Havia um conflito histórico de terra, poder, religião e classes antagônicas. Para muitos, Lampião era a esperança do povo sofrido do sertão e ele serviu para dizer a todos que o sertão existe naquela época tida como invisível aos olhos sulistas.

Nessa época, as revistas tinham a relevância dos jornais como agentes de propagação de valores culturais, em particular por serem de leitura fácil pelo seu conteúdo condensado e virem numa publicação de preço acessível. As revistas tinham a crítica como fio condutor, que pode ser expresso no humor negro e sarcasmo presentes nos textos, poesias, caricaturas, charges e histórias em quadrinhos, colaborando na consolidação do gênero das revistas de tipo ilustrada.

Os quadrinhos, charges e caricaturas atingiam um público mais amplo a quem, os textos não sensibilizavam,. Ou sequer eram entendidos, devido à grande quantidade de analfabetos à época. As publicações, na forma de revistas ou periódicos, tinham nessas artes um instrumento de retratação das lutas entre as camadas sociais do período e a evolução da corrente abolicionista, com o crescimento do mesmo para além da intelectualidade.

Como as histórias em quadrinhos eram tidas, na época, como subliteratura ou leitura para criança, nota-se que havia muita dificuldade de se criar espaço para os desenhistas brasileiros porque na época, sem nenhum sindicato distribuidor para lhe dar proteção, os desenhistas de quadrinhos tinham que enfrentar os quadrinhos norte americanos (Batman, Superman, Pato Donald, Mickey entre outros) que eram distribuídos em todos os jornais a “preço de banana”, devido a força de seu syndicate (agência de distribuição eficiente).


Assim, a consolidação de uma indústria quadrinística de base nacional com autores (roteiristas, desenhistas, arte finalista) produzindo temas voltados para a nossa realidade estava no começo na época do cangaço. E seguindo a cartilha do mito heroico dos quadrinhos norte americanos onde o foco do bem versus mal era o destaque maior, sem aprofundar questões sociais, os quadrinhos do cangaço seguiram a ótica da diabolização e/ou idealização, produtos de um universo simbólico que se abre a vários desdobramentos 


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