27 julho 2019

Maldito, um rótulo que estigmatiza a arte – 2


A maldição atingiu também o cineasta baiano Glauber Rocha, que realizou uma verdadeira revolução formal no cinema brasileiro e se indispôs, sobretudo a partir do movimento do Cinema Novo, contra toda a estrutura conformista que impregnava nosso ambiente cultural. Inquieto, polêmico, combativo, Glauber utilizou nessa luta as armas com que fez seus filmes: agressividade, choque, ternura, imperfeição formal, desprezo pelo convencional. Por sua participação nos principais debates políticos e culturais do País recebeu o rótulo de maldito, mas também o reconhecimento, por parte dos especialistas como o mais importante cineasta brasileiro e um dos maiores da sua geração do mundo inteiro.

Há mais de cem anos o poeta francês Paul Verlaine criou o rótulo ao lançar uma antologia de nomes que lutavam contra a corrente parnasiana: Lês Poetes Maudits, que incluía versos de Rimbaud, Mallarmé, Corbière e do próprio Verlaine, entre outros. Segundo o professor, tradutor e poeta Haroldo de Campo, malditos eram aqueles autores verdadeiramente criativos em oposição ao domínio dos parnasianos. A expressão ganhou notoriedade e passou a designar o artista ou a obra que traz em si a antecipação no futuro, que molda as novas direções da arte. O maldito pode também continuar a sê-lo por muito tempo, ainda que sobre ele se acendam as luzes de um tênue reconhecimento.


O cantor e compositor Jorge Mautner, que misturou na sua trajetória política e cultura sempre foi considerado um maldito com letra maiúscula. Divulgador do PK (Partido do Kaos), inspirado no suporte que inclui a Numerologia, a Cabala, a Astrologia, Telepatia, Empatia e toda e qualquer fenomenologia, a psicanálise freudiana e a todos os dissidentes, Mautner retornou em 1986 ao panorama musical brasileiro justamente se opondo ao rótulo que carregou por tanto tempo, com o lançamento do disco Antimaldito. O tempo passou e ele continuou maldito.

A sociedade elimina os diferentes, isso é ponto pacífico. E para que isto aconteça basta que se esteja um momento em desacerto com as regras estabelecidas pela sociedade. Na maldição incorrem aqueles que chocam a moral corrente, no Ocidente ou no Oriente, nos regimes mais diversos, incorrendo na rejeição social que pode acobertar uma grande obra. Uma referência aos malditos desconhecidos que a posteridade poderá ou não resgatar. A exemplo de tantos que a seu tempo incomodaram e agora estão nas escolas. O limbo não é necessariamente eterno, mas viver nele é árduo, exige todas as forças de um ideal. O escritor Fernando Gabeira, por suas ideias inconformistas, chegou a ser expulso do País, anos mais tarde é digerido com aparente facilidade pela sociedade brasileira. Ainda maldito?


Se fosse o caso de citar os brasileiros considerados malditos, teríamos ainda a dramaturga Leilah Assumpção com seus textos fortes e marcadamente urbanos, refletindo a barra pesada de se viver numa grande metrópole com todos os conflitos a que se tem direito. Não menos inquietos e inconformados foram os dramaturgos Plínio Marcos (que construiu um retrato fiel da falsa sociedade burguesa classe media brasileira) e José Celso (este com a revolução instaurada através da montagem de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade). Não esquecer do poeta brasileiro que melhor encarnou a contracultura, Torquato Neto.

Num ponto todos concordam: a maldição é uma forma de discriminação, de separar o joio do trigo, como se em arte as coisas fossem tão evidentes como o joio e o trigo, o negativo e o positivo. E ser maldito já aparece agora como uma garantia de venda. Quando se vêem malditos vendendo mais que os outros, é sinal que as coisas mudaram. Não se sabe mais o que chamar de maldito, os limites ficaram indefinidos.


Do roqueiro Lou Reed ao cineasta Godard, do escritor Gabeira ao dramaturgo Plínio Marcos, passando pelos cantores Walter Franco e  Sérgio Sampaio, a maldição esteve presente nas suas obras, tornando-os mais inquietos do que já eram naturalmente, pela incompreensão imputada pela sociedade massificadora e pasteurizadora. Muitos já sofreram o estigma e outros ainda hoje são rotulados. Em síntese, se hoje as estrelas badaladas pelos meios de comunicação são castigadas pela rebeldia ao stablishment, a maldição antigamente não poupava os gênios incompreendidos nas artes. Assim é que Baudelaire, Poe, Artaud, Fellini, Mautner, Glauber e outros do mundo literário e artístico estão associados ao conceito de maldição. O debate fica, por assim dizer, aberto.




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