21 novembro 2011

Inquietações de um artista: Laerte (1)

Dono de um trabalho rico tanto visualmente quanto por temáticas e abordagens, o cartunista Laerte Coutinho, 60 anos, faz das histórias em quadrinhos um espaço de inquietação constante. Valores, linguagens, preconceitos e o próprio trabalho são colocados em questão nas quatro linhas que delimitam os quadrinhos. Celebrado por quadrinistas e jornalistas pelo experimentalismo e pela originalidade da sua produção, durante 2010, Laerte revelou gostar de usar roupas e adereços associados ao guarda-roupa feminino (o hábito recebeu uma expressão em inglês chamada crossdresser)


Mais do que suas inquietantes tiras, ele lançou o álbum Muchacha que se tornou a temática principal de entrevistas, matérias e resenhas dos seus livros. Em Muchacha o protagonista principal é o ator Djalma. O personagem, preso a papéis pobres e na maioria das vezes sem falas, se realiza profissionalmente e pessoalmente ao assumir a identidade de cantora transexual cubana que dá o nome ao livro. A obra vai além da temática do travestismo. Para defini-la, Laerte cunhou a expressão “graphic-folhetim”, apropriada porque descreve com perfeição o formato da narrativa, dividida em pequenos capítulos de apenas quatro quadros. Os primórdios da televisão, o pano de fundo da HQ, marcam uma relação com seu livro anterior, Laerte visão.


“Atravesso um período nebuloso, sabe? Uma crise gigantesca, tanto pessoal como profissionalmente. Não ando satisfeito com minhas criações e não imagino um modo de torná-las satisfatórias no curto ou no médio prazo. Talvez nem mesmo no longo. Uma sinuca de bico… Falar sobre minhas ilustrações, meus cartuns e minhas tiras neste momento me incomoda muito. É reivindicar importância para algo que já não avalio como tão relevante”, disse numa entrevista a revista Bravo.


“As primeiras insatisfações surgiram em 2001 ou 2002, no vácuo de uma tempestade maior que causara o fim do meu terceiro e último casamento. Pouco depois, em 2004, o incômodo cresceu e resolvi abdicar de vários elementos que marcavam minha trajetória. Abandonei personagens famosos, como o Overman, os Gatos e os Piratas do Tietê, certo tipo de humor, menos sutil, e a preocupação com a linearidade das histórias. Iniciei, ali, uma fase mais "filosófica", que muitos intitulam de nonsense e que ainda me caracteriza. Uma parcela dos jornais que divulgavam os meus quadrinhos estranhou a reviravolta e acabou me dispensando - caso do gaúcho Zero Hora e do capixaba A Tribuna. Reclamavam de um hermetismo excessivo, de uma obscuridade que atrapalharia a fruição do público. Evidente que não concordo. Rejeito, inclusive, o adjetivo nonsense para definir o meu trabalho. Nonsense pressupõe o caos, a ausência total de significado. Ocorre que minhas tiras buscam, sim, um sentido - mesmo que seja o de aplicar um golpe na lógica, o de implodir o senso comum. Discussões semânticas à parte, noto que a trilha inaugurada em 2004 vai se fechando. Preciso, no fundo, me reconectar com o adolescente atrevido que, 45 anos atrás, ingressou num curso livre de desenho e pintura doido para se expressar. Preciso reencontrar a chave daquela inquietação, daquele frescor, daquela ousadia”.


Sobre o uso do guarda-roupa feminino ele afirmou: “É uma descoberta nova, uma predileção que se insinua há séculos, mas que se manifestou com todas as letras apenas em 2009. Cinco anos antes, um dos meus personagens, o Hugo, decidiu "se montar". Não sei exatamente por quê. Só sei que, de uma hora para outra, arranjou vestido, batom, salto alto e se jogou no mundo. Desde que nasceu, o Hugo se porta como um alter ego do Laerte. Ele costuma assumir nos quadrinhos grilos e desejos que se confundem com os meus. O fato de imitar o visual das mulheres certamente denunciava algo sobre mim - sobre ambições que eu me negava a explorar às claras. Foi quando recebi o e-mail de uma arquiteta, fã do Hugo. Quer dizer: de um arquiteto que abraçou a identidade feminina. O sujeito me perguntava se ouvira falar dos crossdressers, pessoas que gostam de botar roupas ou adereços do sexo oposto. Na época, não dei muita bola. Mas em 2009, por causa do aguçamento de minhas neuras existenciais, procurei um clube de crossdressers, frequentei reuniões organizadas pelo grupo e li a respeito do assunto. Depois, lentamente, agreguei enfeites femininos à indumentária masculina - brincos, colares, unhas pintadas. Hoje, dependendo da ocasião, me visto como mulher dos pés à cabeça, mesmo em lugares públicos, onde acabo passando despercebido. Outras vezes, ponho somente uma bijuteria, um esmalte. De início, meus filhos, minha namorada e meus amigos chiaram. Agora, já se acostumaram. Ou quase”.


Sobre esse comportamento Laerte foi incisivo: “É uma tentativa de fechar esse pequeno furacão dentro de alguns compartimentos: sexualidade, parafilíacos. É muito grande. Vamos baixar esse balão. Por quê? Porque ele está numa área que ninguém entende, gênero. Existe, é a grande lição que a gente explica para as crianças; Você é menino, portanto seu caminho é esse, você é menina, seu caminho é aquele. Não é só questão de vestimenta, mas de uso do corpo. A minha irmã é fisioculturista, além disso é bióloga, socióloga. Ela me diz que as meninas são estimuladas desde cedo a não forçar seus corpos, porque elas vão ficar feias. Isso é uma violência contra o uso do corpo na medida em que os meninos estão se soltando, se expandido, se expressando fisicamente. Eles estão sendo ensinados que eles podem fazer isso e as meninas estão sendo ensinadas que não é adequado. O reflexo disso no uso do corpo no adulto é evidente. Não é só uma questão de roupa, de expressão da sua vontade. As pessoas estranham que tem pouca mulher na política e fazendo charge, cartum, humor de um modo geral. Isso tudo tem um motivo. Elas estão sendo ensinadas desde pequenas. Não tem nenhum motivo real que impeça elas de fazer qualquer coisa que um homem faz”.

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