07 novembro 2007

Nos tempos líquidos o futuro pode morrer de sede (3)

Seguindo o pensamento do sociólogo polonês Zygmunt Bauman sobre os “Tempos Líquidos” e a insegurança dos dias de hoje. Tudo começou com o longo processo do sonho da segurança pessoal, seguido por uma extensa luta contra o poder arbitrário de reis e príncipes. O primeiro passo foi a luta pelos direitos pessoais (normas impostas a todos). O passo seguinte foi a demanda por direitos políticos, ou seja, por desempenhar um papel significativo na elaboração das leis. Mas o entrelaçamento e a interação dos direitos pessoais e políticos são exercidos pelos poderosos (os ricos, e não os pobres). Assim, o direito de voto (o direito de influenciar a composição dos governantes e a concepção das normas impostas aos governados) só poderia ser exercido por aqueles “que possuem recursos econômicos e culturais suficientes” para “se livrarem da servidão voluntária ou involuntária que corta pela raiz qualquer possível autonomia de escolha e/ou sua delegação”.

Não admira – segundo o sociólogo – que por muito tempo os promotores da solução eleitoral para o dilema de assegurar os direitos de segurança pessoal mediante o exercício dos direitos políticos “desejassem limitar o sufrágio segundo a renda e a escolaridade”. Por mais de um século após a invenção e a aceitação do projeto de representação política, a extensão do sufrágio a todas as pessoas, e não apenas às “de posse”, foi rechaçada com unhas e dentes pelos promotores e advogados desse projeto.

Sem direitos sociais para todos, um grande – e provavelmente crescente – número de pessoas irá considerar seus direitos políticos inúteis e indignos de atenção. Os dois tipos de direitos (políticos e sociais) precisam um do outro para sobreviver, e essa sobrevivência só pode ser sua realização conjunta. Mas há dois mundos segregados e separados. As pessoas da camada superior não pertencem ao lugar que habitam, pois suas preocupações estão em outro lugar. Além de ficarem sozinhos e livres para se dedicarem totalmente a seus passatempos e terem os serviços indispensáveis a seu conforto diário assegurados, eles não têm outros interesses investidos na cidade em que se localizam suas residência. A população da cidade não é sua área de pastagem, a fonte de sua riqueza e, portanto, também uma ala sob sua guarda, cuidado e responsabilidade, como costumava ser para as elites urbanas de outrora, os donas de fabricas ou os mercadores de bens de consumo e de idéias.

Já o mundo em que vive a outra camada de moradores da cidade, a camada inferior, é o exato oposto da primeira. Caracteriza-se por ter sido cortado da rede mundial de comunicação à qual as pessoas da camada superior estão conectadas e à qual estão sintonizadas suas vidas. Os cidadãos urbanos da camada inferior são condenados a permanecerem nos locais e, portanto, se pode e deve esperar que suas atenções e preocupações, juntamente com seus descontentamentos, sonhos e esperanças, se concentrem nos “assuntos locais”. Para eles, é dentro da cidade que habitam, que a batalha pela sobrevivência, e por um lugar decente no mundo, é lançada, travada e por vezes vencida, mas na maioria das vezes perdida.

Um condomínio fechado e o isolamento e distância da cidade. Isolamento daqueles considerados socialmente inferiores. As cercas têm dois lados e elas dividem em dentro e fora um espaço que seria uniforme – mas o que está dentro para as pessoas de um lado da cerca está fora para as do outro lado. Os moradores dos condomínios se cercam “fora!, da vida da cidade, desconcertante, confusa, vagamente ameaçadora, tumultuada e difícil, e “dentro” de um oásis de calma e proteção. A cerca separa o gueto voluntário dos ricos e poderosos dos muitos guetos forçados dos pobres e excluídos.

A incerteza do futuro, a fragilidade da posição social e a insegurança existencial (circunstância da vida no mundo líquido-moderno) tendem a se concentrar nos alvos mais próximos e a se canalizar para as preocupações com a proteção pessoal. São os tipos de preocupações que, por sua vez, se transformam em impulsos segregacionistas/exclusivistas, conduzindo a guerras no espaço urbano. O propósito dos espaços interditados é dividir, segregar e excluir – não construir pontes, passagens acessíveis e locais de encontro, facilitar a comunicação e agregar de outras formas os moradores da cidade.

06 novembro 2007

Nos tempos líquidos o futuro pode morrer de sede (2)

A sabedoria antiga advertia: “Se você quer a paz, cuida da justiça”. Atualmente, a ausência de justiça está bloqueando o caminho para a paz, tal como o fazia há dois milênios. Para o sociólogo Zygmunt Bauman o que mudou é que agora a “justiça” é, diferentemente dos tempos antigos, uma questão planetária, medida e avaliada por comparações planetárias. E apresenta as duas razões: O mundo está atravessado por “auto-estradas da informação”, nada que acontece em alguma parte dele pode de fato permanecer ao “lado de fora” intelectual. A miséria humana de lugares distantes e estilos de vida longínquos, assim como a corrupção de outros lugares são apresentadas por imagens eletrônicas e trazidas para casa e modo tão nítido e pungente como o sofrimento ou a prodigalidade ostensiva dos seres humanos próximo de casa. As injustiças a partir das quais se formam os modelos de justiça não são mais limitadas à vizinhança imediata e coligadas a partir de “privação relativa” ou dos “diferenciais de rendimento” por comparação com vizinhos de porta.

Assim, num planeta aberto à livre circulação de capital e mercadorias, o que acontece em determinado lugar tem um peso sobre a forma como as pessoas de todos os lugares vivem, esperam ou supõem viver. Nada pode verdadeiramente ser, ou permanecer por muito tempo, indiferente a qualquer outra coisa: intocado e intocável. A quebra de fronteiras, chamada de globalização, tornou as sociedades abertas, seja material ou intelectual. Resultado: toda injúria, privação relativa ou indolência planejada em qualquer lugar é coroada pelo insulto da injustiça: o sentimento de que o mal foi feito, um mal que exige ser reparado, mas que, em primeiro lugar, obriga as vítimas a vingarem seus infortúnios...

Trata-se de uma sociedade impotente, em decidir o próprio curso com algum grau de certeza e em proteger o itinerário escolhido, uma vez selecionado. Essa globalização seletiva do comércio e do capital, da vigilância e da informação, da violência e das armas, do crime e do terrorismo. Todos unânimes em seu desdém pelo princípio da soberania territorial e em sua falta de respeito a qualquer fronteira entre Estados. Uma sociedade “aberta” é uma sociedade exposta aos golpes do “destino”. A perversa abertura das sociedades imposta pela globalização negativa é por si só a causa principal da injustiça e, desse modo, indiretamente, do conflito e da violência.

“Mercados sem fronteiras” é uma receita para a injustiça e para a nova ordem mundial. A política passa a ser um continuação da guerra por outros meios, basta observar as ações do governo dos Estados Unidos e seus “satélites mal disfarçados” de instituições internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio que geraram o nacionalismo, o fanatismo religioso, o fascismo e o terrorismo nessa globalização liberal. Daí outra advertência da sabedoria antiga: quando as armas falam, as leis silenciam. E não foi o sentimento de segurança a única baixa colateral da guerra. As liberdades individuais e a democracia logo compartilharam a mesma sorte. O medo agora se estabeleceu, saturando nossas rotinas cotidianas.

Os que podem se dar ao luxo de se fortalecerem contra os perigos, protegem-se por trás de muros, equipando os acessos a moradias com câmeras de TV, contratando segurança armados, dirigindo carros blindados. E o círculo vicioso foi deslocado/transferido da área da segurança (a autoconfiança e a auto-afirmação, ou a ausência delas) para a proteção (resguardar as ameaças à própria pessoa e suas extensões). Assim a primeira área despida de sua proteção institucionalizada pelo Estado tem sido exposta aos caprichos do mercado. Grande parte do capital comercial é acumulado a partir da insegurança e do medo. Os publicitários têm explorado os medos generalizados de terrorismo catastróficos para aumentarem ainda mais as vendas dos utilitários esportivos, altamente lucrativos (os veículos militares esportivos já alcançaram 45% de todas as vendas de automóveis nos EUA). A estratégia de lucrar com o medo está igualmente bem arraigada.

A sociedade não é mais protegida pelo Estado, ou pelo menos é pouco provável que confie na proteção oferecida por este. O que resta de força e de política a cargo do Estado e seus órgãos se reduz gradualmente a um volume suficiente para guarnecer pouco mais que uma grande delegacia de polícia. O Estado reduzido dificilmente poderia conseguir ser mis eu um Estado da proteção pessoal. Num planeta negativamente globalizado, todos os principais problemas são globais e, sendo assim, não admitem soluções locais. A insegurança do presente e a incerteza do futuro produzem e alimentam o medo. Essa insegurança e incerteza nascem de um sentimento de impotência.

05 novembro 2007

Nos tempos líquidos o futuro pode morrer de sede (1)

Terrorismo, crime organizado, desemprego e solidão são fenômenos típicos de uma era na qual a exclusão e a desintegração da solidariedade expõem o homem aos seus temores mais graves. A insegurança é a marca fundamental dos tempos líquidos–modernos. Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman as cidades são hoje verdadeiros campos de batalha, onde poderes globais se chocam com identidades locais, abandonadas pela desintegração da solidariedade social. O produto desse encontro não poderia ser outro senão a violência e a insegurança generalizadas.

No seu estudo o sociólogo afirma que a passagem da fase “sólida” da modernidade para a “líquida”, ou seja, para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não poderia mais manter sua forma por muito tempo, pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez organizadas, para que se estabeleçam. O segundo ponto observado por Bauman está na separação e divórcio entre o poder e a política. Grande parte do poder de agir efetivamente, agora se afasta na direção de um espaço global politicamente descontrolado, enquanto a política (a capacidade de decidir a direção e o objetivo de uma ação) é incapaz de operar efetivamente na dimensão planetária, já que permanece local. Assim, a ausência de controle político transforma os poderes recém-emancipados numa fonte de profunda e incontrolável incerteza, enquanto a falta de poder torna as instituições políticas existentes cada vez menos relevantes para os problemas existenciais dos cidadãos dos Estados-nações e, por essa razão, atraem cada vez menos a atenção destes. O resultado disso é que os órgãos do Estado abandonam, transferem ou terceirizam um volume crescente de funções que desempenhavam anteriormente.

Abandonados pelo Estado, essas funções se tornam um playground para as forças do mercado (iniciativa privada e aos cuidados dos indivíduos). No Rio de Janeiro, por exemplo, as favelas, abandonadas pelo Estado, estão “protegidas” pelo tráfico de drogas. A redução gradual da segurança comunal endossada pelo Estado, contra o fracasso e o infortúnio individuais retira da ação coletiva grande parte da atração que esta exercia no passado e solapa os alicerces da solidariedade social. A exposição dos indivíduos aos caprichos dos mercados de mão-de-obra e de mercadorias inspira e promove a divisão e não a unidade. Incentiva as atitudes competitivas, rebaixa a colaboração e o trabalho em equipe. A sociedade é cada vez mais vista e tratada como uma “rede” em vez de uma “estrutura”.

O colapso do pensamento, do planejamento e da ação a longo prazo, e o desaparecimento ou enfraquecimento das estruturas sociais leva a um desmembramento da história política e das vidas individuais numa série de projetos e episódios de curto prazo que são infinitos e não combinam com os tipos de seqüências aos quais os conceitos como “desenvolvimento”, “maturação”, “carreira” ou “progresso” (ordem de sucessão pré-ordenada) poderiam ser significamente aplicados. Uma vida assim fragmentada estimula orientações “laterais”, mais do que “verticais”. Esse é o quarto ponto.

O quinto e último ponto é a responsabilidade em resolver os dilemas gerados por circunstâncias voláteis e constantemente instáveis é jogada sobre os ombros dos indivíduos – dos quais se esperam que sejam “free-choosers” e suportem plenamente as conseqüências de suas escolhas. A prontidão em mudar repentinamente de táticas e de estilo, abandonar compromissos e lealdades sem arrependimento – e buscar oportunidades mais de acordo com sua disponibilidade atual do que as próprias preferências.

Como essas mudanças influenciam a maneira como homens e mulheres tendem a viver suas vidas?, indaga Zygmunt Bauman no livro “Tempos Líquidos” (Zahar). O efeito geral das cinco mudanças listadas acima é a necessidade de agir, planejar ações, calcular ganhos e perdas esperados dessas ações e avaliar seus resultados em condições de incerteza endêmica. O autor estudou as causas dessa incerteza e desnudou alguns dos obstáculos que impedem a sua compreensão e nossa capacidade de enfrentar os desafios que qualquer tentativa de controlá-las necessariamente apresenta.

01 novembro 2007

Música & Poesia

A Via Lactea (Legião Urbana)

Quando tudo está perdido

Sempre existe um caminho

Quando tudo está perdido

Sempre existe uma luz

Mas não me diga isso

Hoje a tristeza não é passageira

Hoje fiquei com febre a tarde inteira

E quando chegar a noite

Cada estrela parecerá uma lágrima

Queria ser como os outros

E rir das desgraças da vida

Ou fingir estar sempre bem

Ver a leveza das coisas com humor

Mais não me diga isso!

É só hoje e isso passa...

Só me deixe aqui quieto

Isso passa.

Amanhã é outro dia

Não é?

Eu nem sei por quê me sinto assim

Vem de repente um anjo triste perto de mim

E essa febre que não passa

E meu sorriso sem graça

Não me dê atenção

Mais obrigado por pensar em mim.

Quando tudo está perdido

Sempre existe uma luz

Quando tudo está perdido

Sempre existe um caminho

Quando tudo está perdido

Eu me sinto tão sozinho

Quando tudo está perdido

Não quero mais ser quem eu sou.

Mais não me diga isso!

Não me dê atenção!

E obrigado por pensar em mim..

Um Sorriso (Manuel Bandeira)


Vinha caindo a tarde. Era um poente de agosto.

A sombra já enoitava as moutas. A umidade

Aveludava o musgo. E tanta suavidade

Havia, de fazer chorar nesse sol-posto.

A viração do oceano acariciava o rosto

Como incorpóreas mãos. Fosse ágoa ou saudade,

Tu olhavas, sem ver, os vales e a cidade.

- Foi então que senti sorrir o meu desgosto...

Ao fundo o mar batia a crista dos escolhos...

Depois o céu... e mar e céus azuis: dir-se-ia

Prolongarem a cor ingênua de teus olhos...

A paisagem ficou espiritualizada.

Tinha adquirido uma alma. E uma nova poesia

Desceu do céu, subiu do mar, cantou na estrada...

31 outubro 2007

Bioética

O mundo vive uma grande crise – ambiental, ético, estrutural... Não existe área da atividade humana que não esteja passando por grandes transformações. A diferença do ontem para o hoje é que em outros momentos da história havia sistemas de pensamento (Iluminismo por exemplo). Agora tudo está se dando no vazio do pensamento. O que se atribui tal vazio? Segundo os filósofos, se explicaria pela autonomia da tecnociência. Os avanços tecnológicos, cada vez mais velozes e potentes, não têm sólidas bases éticas ou humanistas. Para muitos, o homem não domina a técnica, mas está dominado por ela. Há uma separação entre ciência e pensamento. Os intelectuais estão estudando essa separação e as possibilidades de conexão, traduzidas em termos como bioética.

Sabemos que desde o século 17 que a ciência e religião estão em permanente guerra. Naquela época Galileu Galilei e a Inquisição entraram em crise e o cientista foi forçado a abjurar sua convicção de que o Sol e não a Terra era o centro do cosmo. Enquanto a ciência tenta descrever o mundo natural, baseado em experimentos e observações, a religião adota uma realidade sobrenatural coexistente, capaz de interferir com a realidade natural. As tecnologias são frutos desse questionamento, desde a revolução digital até os antibióticos. As duas são necessário, pois o homem é tanto um ser espiritual quanto racional.

Bioética é o estudo transdisciplinar entre biologia, medicina e filosofia (dessa, especialmente as disciplina da ética, da moral e da metafísica), que investiga todas as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana (em geral) e da pessoa (em particular). Considera, portanto, a responsabilidade moral de cientistas em suas pesquisas, bem como de suas aplicações. São temas dessa área, questões delicadas como a fertilização in vitro, o aborto, a clonagem, a eutanásia, e os transgênicos.

A Ética surge como uma resposta a problemas, é uma reflexão-ação com base na realidade. A Bioética, atualmente, é considerada como sendo a Ética Aplicada às questões da saúde e da pesquisa em seres humanos, ou seja, é ética da vida. A Bioética aborda estes novos problemas de forma original, secular, interdisciplinar, contemporânea, global e sistemática. Desta forma, estimula novos patamares de discussão que podem possibilitar soluções adequadas. A Bioética busca maior humanização nas relações entre médico, paciente e sociedade. É a ciência com consciência.

Nunca se falou tanto sobre ética no comportamento humano com o objetivo de buscar um modelo de vida inspirado no respeito ao homem, como nos últimos anos. Essa preocupação saiu do âmbito filosófico- acadêmico e está fazendo com que as pessoas comuns reflitam: O que é certo ou errado? Como pensar e agir? Até onde a ciência pode avançar? Dignidade humana? A chave para responder a estas perguntas está na utilização do conhecimento para a melhoria da qualidade de vida humana, já que o saber e a ciência devem ser vistos como patrimônio da humanidade.

O avanço da biotecnologia tem trazido muitas conquistas à humanidade, mas também, muitos riscos, assim, a aplicabilidade dos procedimentos na investigação científica, precisa ser revista e repensada, pois embora possa ser científico nem sempre é ético. Afinal de contas, até que ponto a ciência "age" em benefício da humanidade? Daí a necessidade de se compreender a bioética.

Trabalhar com bioética no Brasil é pensar menos em tecnologias de ponta e voltar nossos olhares para o cidadão comum, carente de oportunidades, e merecedor de uma atenção que proporcione um mínimo de dignidade a cada ser humano. Pensar o desenvolvimento sem olhar os pequenos é passar ao lado da realidade.

30 outubro 2007

Pessoa, múltiplo, só

No dia 30 de novembro de 1935 morria o poeta português Fernando Pessoa. Sua obra continua a exercer forte influência em inúmeros poetas. Criador de uma obra poética de dimensões universais como um caso único, Pessoa é uma figura fundamental para a poesia contemporânea. Transportuguês, universal, pessoal, múltiplo, só.

“Triste de quem vive em casa,

Contente com o seu lar,

Sem que um sonho, no erguer de asa

Faça até mais rubra a brasa

Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!

Vive porque a vida dura.

Nada na alma lhe diz

Mais que a lição da raiz

Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem

No tempo que em eras vem.

Ser descontente é ser homem.

Que as forças cegas se domem

Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro

Tempos do ser que sonhou,

A terra será teatro

Do dia claro, que no atro

Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,

Europa — os quatro se vão

Para onde vai toda idade.

Quem vem viver a verdade

Que morreu D. Sebastião? (O Quinto Império)”

No sofrido recato de sua vida pessoal, deu-nos uma plena medida da grandeza humana, como poucos o terão feito. “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Franzino e atormentado homem, Pessoa foi um gigante da palavra poética, iluminado.

“Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu. (Mar Português)

Com uma temática multiforme, mudando a cada instante a paisagem, o tempo e o espaço, a poesia de Fernando Pessoa é inquietante. Mergulhada nas subterrâneas entranhas, profundas e obscuras numa apreensão do mistério que a tudo prolonga, ele viveu fechado numa solidão misteriosa. Cheio de fagulhas de poesia ele se multiplicou para chegar ao seu “eu profundo”, reconstruído pelo sonho e pela poesia.

“O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração. (Autopsicografia)”

Melancolia, introspecção, dor. Para transcender seu mundo modesto e solitário ele construiu heterônimos e, para cada um construiu biografia e estilo próprios. Alberto Caeiro fazia poemas bucólicos e pastoris. Álvaro de Campos era o responsável pelas mais inspiradoras e audaciosas poesias do seu criador. Ricardo Reis é o poeta das odes e da linguagem clássica. Bernardo Soares, autor de um diário lírico e metafísico intitulado “O Livro do Desassossego”. Antonio Mora, autor de “O Regresso dos Deuses”.

“Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto,

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz. (Trecho de O Guardador de Rebanhos)”

"Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos - a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios tons da inconsciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos...O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas." (Livro do Desassossego: Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa / Fernando Pessoa)“Tenho tanto sentimento

Que é freqüente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar. (Cancioneiro)”

No mundo inteiro, Pessoa é relançado, lido e considerado um dos gigantes da poesia do século XX. “Não sou nada/nunca serei nada/não posso querer ser nada/à parte isso, tenho em mim todos os sonhos/do mundo”.

29 outubro 2007

O que aconteceu em 1967?

Há 40 anos o mundo estava em ebulição na efervescente contracultura. A “febre do fazer” (na opinião de Lina Bo Barde) estava em alta. No cinema, Glauber Rocha mostrava as contradições do Brasil em “Terra em Transe”. Na teatro Zé Celso Martinez Corrêa estreou sua famosa montagem de “O Rei da Vela”, no Teatro Oficina. Na música Caetano Veloso e Gilberto Gil apresentaram “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”, inaugurando o tropicalismo. Na literatura o colombiano Gabriel García Márquez consolidava o “realismo mágico” com seu “Cem Anos de Solidão” e o romantismo revolucionário do continente chegava ao fim com a morte, na Bolívia, de Che Guevara, o guerreiro imortalizado no mundo inteiro. E a ciência marcava pontos com o primeiro transplante de coração, realizado pelo médico sul-africano Christian Barnard. Ele transplanta o coração de uma jovem de 25 anos para um homem de 55 anos. E a pílula anticoncepcional desencadeou a revolução sexual. O sexo (antes para a reprodução) pendeu para o lado do prazer.

Jean-Luc Godard satiriza os filhos da classe média que se julgavam revolucionário no filme “A Chinesa”. Ele estilhaça a política provocando estranheza. Outro impacto de rajada de tiros e discursos numa alegoria do caos está presente no filme “Terra em Transe”, de Glauber Rocha. Reflexão amarga sobre a derrota da esquerda, seu fluxo narrativo obedece aos delírios do protagonista (um jornalista de classe média envolvido com um político populista), ferido mortalmente. Na enxurrada de recordações do protagonista podem-se ver as contradições de um país de terceiro mundo e da pequena burguesia urbana, dividida entre o sonho revolucionário romântico e os desejos mesquinhos da realidade. Catherine Deneuve começa sua carreira como heroína ingênua do cinema francês. Aos poucos, vai se transformando numa deusa loira sofisticada, uma mulher independente que escolhe cada filme que vai fazer. Em “A Bela da Tarde (1967) de Luis Buñuel ela faz o papel de pura e perversa, até fundir num novo modelo de mulher que, desde então, sempre acompanharia a atriz.

No mundo da música, era lançado o primeiro disco dos Doors e a experiência radical do Velvet Underground. Mas a ruptura aconteceu com o lançamento de Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. O disco introduziu referências da música erudita, sonoridades indianas e uma dissonância vanguardista influenciando todo mundo. Citado como o maior disco de rock de todos os tempos, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, inaugurava o experimentalismo eletrônico na música popular contemporânea, sendo a primeira vez que músicos do rock aproveitavam todos os recursos e possibilidades, tanto da gravação feita em estúdio quanto da eletrônica. Nesse LP, onde o popular e o erudito se encontravam, instrumentos se misturavam a estranhos sons e a música incorporava cores e gestos. Foi o primeiro “álbum conceitual”.

No Brasil uma injeção de criatividade no poético da palavra cantada surgia com “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso. Na letra feita de estilhaços de imagens para falar de um Brasil fragmentado, moderno e jovem. O mundo das bancas de revista, da comunicação rápida. O ícone vocal da América, Frank Sinatra, curvou-se ao gênio de Tom Jobim e dividiu um disco com ele.

O professor Marshall McLuhan lança seu livro-poema-produção visual-performance gráfica-multiautoral “O Meio É a Massagem” colocando em prática as teorias anunciadas em seu livro anterior. As expressões cunhadas por ele como “aldeia global”, “galáxia de Gutemberg” ou “era da informação” se tornaram voz corrente em todo o mundo e seu nome se transformou em conceito analítico. Foi venerado por muitos e desprezado por outros. Comentando as reações dos contemporâneos ao seu pensamento ele dizia: “Nós olhamos o presente pelo espelho retrovisor. Adentramos o futuro marchando para trás”.

Ainda em 1967, em São Francisco que surgiam os yuppies ou hippies politizados, nome derivado do YIP (Youth International Party - Partido Internacional da Juventude). Jerry Rubin, ex-líder estudantil de Berkeley, proclamava: “Os yuppies são revolucionários. Misturamos a política da Nova Esquerda com o estilo de vida psicodélico. Nossa maneira de viver, nossa própria existência é a revolução”. Consumava-se, assim, segundo alguns, a mistura da revolução cultural com a revolução política. Nas histórias em quadrinhos Guy Pellaert apresenta a personagem Pravda enquanto Guido Crepax desenha a erótica saga sadomasoquista de Valentina.

O jornalista Antônio Calado publicou em 1967 o romance “Quarup”, onde descreve o intelectual da cidade experimentando a realidade da selva. Seus personagens vão viver no Xingu e, no caminho, deparam-se com a repressão no Nordeste nos primeiros anos da Revolução de 1964. E no carnaval de rua de Salvador, em 1967, a presença marcante do bloco Apaches do Tororó, nova agremiação de jovens da comunidade negro mestiça, influenciados pelos filmes de caubói norte americanos. Polêmico, agressivo, pioneiro no uso de música própria e de um tema para cada carnaval, este bloco torna-se um dos mais importantes da década seguinte, chegando a contar cinco mil participantes.

25 outubro 2007

O que aconteceu em 1973?

O ano de 1973 no Brasil estava sob o governo Médice, no auge do regime militar. O mundo estava em expansão e permitiu o aumento de investimento via endividamento externo. A moda era a calça boca de sino. A musa, Darlene Glória. O ídolo esportivo, Emerson Fittipaldi. Na vitrola, rodavam os Secos & Molhados.

Foi o grande estouro do ano. Os Secos & Molhados eram liderados pelo inquieto Ney Matogrosso. Com letras descomplicadas e muitas músicas feitas a partir de poemas de autores brasileiros, seu primeiro disco chegou rapidamente ao topo das paradas de sucesso e vendeu mais de 800 mil cópias no ano. Com eles, a música popular retomava as últimas consequências a antropofagia musical tropicalista. O grupo formado por Ney Matogrosso, João Ricardo e Gérson Conrad se tornaria um fenômeno em pouco mais de um ano de ida. Eles já irromperam na cena conquistando o público, rendendo a mídia e abocanhando o mercado fonográfico. Mais que um grupo, Secos & Molhados se tornou um conceito. O trio já nasceu cult e, ao mesmo tempo, super-popular. Várias faixas do disco viraram hits. Os mais poéticos embeveciam-se com “Rosa de Hiroshima”, poema de Vinícius de Moraes, os jovens se embalavam na força de “Sangue Latino”, e a garotada ia à loucura com “O Vira”.

As guitarras, a poesia, os arranjos modernos, a maquiagem, o vocal insólito e o rebolado de Ney provocaram um espanto sem precedentes. Lançado em agosto de 1973, o LP Secos & Molhados vendeu 300 mil cópias em três meses. Em um ano, chegou à marca das 800 mil, quase o dobro do campeão de vendas da época, Roberto Carlos, com a banda lotando estádios por todo o país. Em agosto de 1974, o grupo lançaria o segundo LP, simultaneamente ao anuncio da saída de Ney. A saída do vocalista foi seguida pelo violonista Gerson alegando a mesma razão, o controle dos direitos autorais e das finanças por João Ricardo, o principal compositor e que tentaria ressuscitar (sem sucesso) o grupo em 1977, 1980 e 1987. E o álbum de 1973 foi eleito um dos melhores discos da história do Brasil.

Outro emblemático disco de 1973, gravado em Londres, foi “Dark Side of the Moon”, do grupo psicodélico britânico Pink Floyd. O disco sombrio ficaria mais de 700 semanas na lista dos 200 de maior sucesso nos EUA, um recorde histórico. Escorado por músicas como “Money”, “Breathe”, “Time” e “The Great Gig in the Sky”, o álbum com a capa do prisma tornou-se um ícone da cultura pop. O conceito do disco, segundo o baixista, fundador e principal compositor do grupo, Roger Walter, gira em torno do individualismo e de como a sociedade tornou-se opressora. O disco permaneceu por 724 semanas na parada dos EUA, um recorde. Já foram vendidas mais de 30 milhões de cópias do álbum e relançado com materiais extras no 20º e 30º aniversários. Em março desde ano (2007) Walter apresentou-se na praça da Apoteose, Rio e no estádio do Morumbi, SP, tocando todas as canções de “Dark Side of the Moon”.

A importância do Pink Floyd surgiu a partir da utilização de recursos da música concreta (ruídos de portas que se abrem e fecham, de passos de pessoas, de água que escorre, etc) e eletrônico, fundidas com o estilo clássico, baladas inglesas tradicionais, blues e rock. Com ruídos inéditos, o Pink Floyd sugeria uma atmosfera de ficção científica, além de propor uma nova abertura, desde o aparecimento dos Beatles, no saturado universo da música pop. O conjunto é pioneiro no uso de laser, audiovisuais e suportes mecânicos em seus super-produzidos concertos ao vivo.

Ainda no mundo da música Raul Seixas lança seu grito de guerra no Lp “Krig-há, Bandolo” (na verdade, esse grito é dos macacos nos gibis de Tarzan que Seixas era fã), Tom Jobim com o seu “Matita Perê”, Milton Nascimento e o “Milagre dos Peixes”, o maldito Walter Franco e “Ou Não”, Paulinho da Viola com o excelente “Nervos de Aço”, Luiz Melodia e a sua “Pérola Negra”, “Tom Zé com “Todos os Olhos” e Gal Costa com “Índia”.

No cinema os destaques do ano são O Último Tango em Paris, de Bertolucci, Gritos e Sussurros, de Bergman, e Amarcord, de Fellini (1973). Os musicais pop, rescaldo da contracultura, fazem sucesso: Godspell, a Esperança, de David Greene e Jesus Cristo Superstar, de Norman Jewson. No Brasil chega às telas Toda Nudez Será Castigada, de Arnaldo Jabor. A adaptação da peça de Nélson Rodrigues causa escândalo nos cinemas. Tem ainda obras importantes como Uirá, o Índio em Busca de Deus, de Gustavo Dahl, Os Condenados, de Zelito Viana, Sagarana, o Duelo, de Paulo Thiago. O ano marca o auge da produção pornochanchada, gênero que tem uma fórmula baseada em humor, muito sexo e que consegue ampliar o público do cinema - em dez anos, o número de espectadores no país salta de 25 milhões para 60 milhões.

Várias foram as formas de resistência que os autores críticos usaram para se contrapor à política e ideologia do regime e para fazer chegar ao público suas mensagens, driblando a tesoura e o camburão. Entrelinhas, duplos sentidos, trocadilhos, mensagens cifradas: para bom entendedor, meia palavra tinha de bastar. Foram produzidas (e proibidas) várias obras críticas que versavam sobre os problemas sociais, o sufoco e a repressão daqueles tempos. Como exemplo, peça teatral como Um Grito Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri (1973).

Lima Duarte incorporou o cangaceiro Zeca Diabo e Paulo Gracindo viveu Odorico Paraguaçu na primeira novela em cores da TV brasileira: O Bem Amado. Nas noites de domingo uma voz anunciava “olhe bem, preste atenção!. Era o Fantástico, da Rede Globo, o programa revista de entretenimento com jornalismo.

Na Bahia a escola de samba Juventude do Garcia desfila pela última vez em 1973. É sinal de decadência desse tipo de agremiação momesca no carnaval baiano, cada vez mais identificado com o surgimento de grandes blocos e de trios elétricos com sistemas de som sempre mais potentes e sofisticados. Quem é da época pode relembrar mais atrações daquele ano....

24 outubro 2007

As eternas canções da sétima arte (3)

Há 80 anos o cinema deixava de ser mudo para começar a falar. Em 1927, O Cantor de Jazz chegava às telas com a novidade. Graças aos irmãos Warner, os filmes já não tinham mais que ser mudos. Assim, o Cantor de Jazz passa a ser o primeiro filme da história a utilizar o invento do som no cinema, No ano seguinte, a técnica melhorou: enquanto o primeiro filme era composto, basicamente de canções, Lights of New York era composto inteiramente por diálogos.

Já foi o tempo em que para se conseguir músicas de filmes atuais era preciso procurar nas lojas discos importados. No Brasil, as trilhas de novelas sempre deram dinheiro, mas foi só com a explosão do álbum duplo Os Embalos de Sábado à Noite (1977), que os americanos começaram a investir no mercado das trilhas que, até então, eram considerados álbuns de faixas instrumentais inúteis, eu interessavam apenas aos cinéfilos. Desde os anos 70, os filmes de James Bond têm canções pop. A série Rocky também tem seus hits. A relação rock/cinema tem seu grande momento em American Graffiti (1973), The Rose (1979), Footloose (1984) e muitos outros.

CULT

A trilha do grego Vangelis para o cult movie Blade Runner é muito procurada nas lojas de discos ou mesmo Carruagens de Fogo. Já Maurice Jarre é conhecido internacionalmente pela música de Lawrence da Arábia (1962), Doutor Jivago (1966), Passagem para a Índia, Sociedade dos Poetas Mortos, A Testemunha e Ghost. Ryuichi Sakamoto é mais conhecido entre nós pela bela trilha de Furyo, em Nome da Honra. O veterano Elmer Bernstein já produziu Os Dez Mandamentos, Meu Pé Esquerdo, dentre outros. Ennio Morricone, um dos mais conhecidos compositores de trilhas sonoras, assinou músicas dos filmes: Pecados de Guerra, Os Intocáveis, Saló, Era uma Vez no Oeste, Cinema Paradiso, Era Uma Vez na América, A Missão, dentre outros. Nestes trabalhos, as qualidades musicais extrapolam as situações dos filmes para os quais foram escritos.

No Brasil, há, também, grandes músicos ligados ao cinema. Wagner Tiso, por exemplo, faz hoje uma música essencialmente descrita. A cada som corresponde uma cor, um traço, uma imagem. “A Música está muito próxima da imagem do que da palavra”, define. Primeiro Wagner Tiso cria a cena para depois adequar, nos teclados, o imaginário à música. Tiso é autor da trilha de Ele, o Boto. “Para mim, a letra de minha música é a imagem”, responde David Tiger, autor da trilha de O Homem da Capa Preta, premiada em 1986 no Festival de Gramado. Sérgio Serraceni é autor da trilha de Nunca Fomos Tão Felizes; Victor Biglione é de Faca de Dois Gumes e Radamés Gnatalli de Eles não Usam Black Tie. A introdução do ruído ambiente, música e palavra vem conferir mais espessura e densidade à imagem, aumentando o seu poder de ilusão. É substancial a ajuda da dimensão sonora. Diante de cada plano, o som é um fator decisivo de definição clara, enquanto que se estende para além dos limites do quadro. Mas é importante saber que a trilha sonora não é imagem acrescida de um acessório, e sim imagem e som como elementos equilibrados para a fantasia do cinema.

23 outubro 2007

As eternas canções da sétima arte (2)

Há 80 anos o cinema deixava de ser mudo para começar a falar. Em 1927, O Cantor de Jazz chegava às telas com a novidade. Graças aos irmãos Warner, os filmes já não tinham mais que ser mudos. Assim, o Cantor de Jazz passa a ser o primeiro filme da história a utilizar o invento do som no cinema, No ano seguinte, a técnica melhorou: enquanto o primeiro filme era composto, basicamente de canções, Lights of New York era composto inteiramente por diálogos.

A partir dos anos 30 a música de fundo do cinema se transformou numa linguagem. Esta foi a década dos grandes filmes – épicos, românticos, dramáticos, produções que exigiam densidade sonora para acentuar ação e emoção. Por outro lado, a Europa estava em guerra e os compositores eruditos fugiram de lá para a América. Foram eles que, atendendo às exigências dos grandes filmes, criaram a trilha sonora. O austríaco Max Steiner foi um dos inventores. Inspirado nas óperas ele criou uma música para cada personagem. É dele a trilha de maior duração da história do cinema: ... E o Vento Levou com três horas e 40 minutos para quatro horas de filme. Apenas Scarlett O´Hara teve três temas compostos para ela. Ninguém entendeu porque o filme perdeu o Oscar para “No Tempo das Dilegências”.

Também é de Max Steiner a trilha de outro clássico, Casablanca, embora a canção-tema que todo mundo conhece, “As Time Góes By”, seja originalmente uma canção da Broadway. Steiner foi premiado com o Oscar pelas trilhas de “Estranha Passageira” (1942) e “Desde que Partiste” (44). Outro compositor pioneiro foi Dimitri Tiomkin. Foi ele quem derrotou “...E o Vento Levou”, com a trilha de “No Tempo das Diligências” (1939). No filme Matar ou Morrer (1952), ele criou a primeira canção-tema composta especialmente para um filme de fundo. Dimitri compôs uma canção cuja letra conta a história do mocinho desse filme. A fita recebeu o Oscar de melhor canção e trilha sonora. Ele recebeu outros Oscar: “Um Fio de Esperança” (1954), “O Velho e o Mar” (1958), além de fazer a trilha de “Duelo ao Sol”, entre outras.

O húngaro Miklos Rozsa inventou a música solene dos filmes épicos. Concertista e compositor clássico, é dele as trilhas de Quo Vadis, Ben Hur, El Cid, além de Oscar de melhor música em Quando Fala o Coração (1945) e Fatalidade (1947). Vale lembrar que o Oscar de música (partitura) foi entregue, pela primeira vez, em 1934, para Louis Silvers no filme Uma Noite de Amor. A melhor canção foi para Continental, de Com Conrad, letra de Herb Magidson. Primeira a ganhar um Oscar, em Alegre Divorciada, o primeiro musical em que a dupla Ginger Rogers/Fred Astaire fazia o papel principal. Gene Kelly fez sua obra-prima há 55 anos: Cantando na Chuva, até hoje um dos maiores musicais já produzidos por Hollywood. Gene é um dos raros artistas que conseguem provar que uma cena pode valer um filme. Uma ode sorridente à alegria exuberante é a cena dele dançando sobre poças d´água, sapateando no chão molhado, oferecendo o rosto sorridente a um banho de chuva fotografado em close. O filme é uma sátira do extravagante mundo cinematográfico dos anos 20, com suas histórias pré-estréias e a frenética chegada do som.

Do suspense à aventura

Não podemos esquecer que, em 1934, o Oscar de melhor música original foi para Herbert Stothart, em O Mágico de Oz, e a melhor canção, também neste filme, foi para “Over The Rainbow”, de Harold Arlen e E.Y.Harburg, cantada por Judy Garland. A fita é uma das preferidas do público em todos os tempos. Os musicais foram buscar, na Broadway, os seus melhores “songwrites”, como Cole Porter, Irving Berlin, George Gershwin, Richard Rodgers, Jerome Kern, Harold Arlen, entre outros. Depois surgiram as parcerias de Harry Warren e Al Dubin, Mack Gordon e Harry Revel, Jimmy McHugh e Dorothy Fields e Ralph Rainger e Leo Robion já escrevendo diretamente para o cinema. Todos eles produziram canções, mas não tinham nenhum envolvimento com o resto da parte musical dos filmes. Os compositores europeus encontraram na América alguns músicos eruditos e juntos eles fizeram a história da trilha sonora.

O americano Bernard Hermann era o preferido de Hitchcock e muito contribuiu para aquele clima de tensão e suspense de filmes como Um Corpo que Cai e Psicose. É dele, também, as trilhas de Os Pássaros e Cidadão Kane. Da mesma forma que Hitchcock, o cineasta italiano Federico Fellini trabalhou quase sempre com o mesmo compositor, Nino Rota. Italiano, autor de trilhas inesquecíveis como A Doce Vida!, Os Boas Vidas, Ensaio de Orquestra, Amarcord e O Poderoso Chefão 2ª Parte.

O compositor favorito de Steven Spielberg é John Williams. Ele compôs trilhas para E.T., o Extraterrestre! (Oscar de 1982), Guerra nas Estrelas (Oscar de 77), Império do Sol, Indiana Jones, Superman, o Filme, Tubarão (Oscar de 1975), Contatos Imediatos do 3º Grau, Um Violinista no Telhado e vários outros.

Elmer Bernstein usou o jazz, pela primeira vez, em A Embriaguez do Sucesso e O Homem do Braço de Ouro nos anos 50, e abriu importante precedente, sendo logo seguido por Henri Mancini, em A Marca da Maldade, e Johnny Mandel, em Quero Viver. Mancini ganhou o Oscar de melhor música e melhor canção em 1961 no filme Bonequinha de Luxo. É bem provável que o “score” de Isaac Hayes para Shaft (Oscar de melhor canção, em 1971) tenha aberto o caminho à eletrificação geral vigente hoje em dia. Pois a música de cinema hoje cede às exigências do mercado fonográfico. A fórmula veja-o-filme-ouça-o-disco já demonstrou sua força. Isso só aconteceu com o aparecimento do LP. Até então, o que sobrevivia da música feita para o cinema era uma ou outra canção que determinado cantor ou orquestra ajudava a popularizar.