“Era o único modo de sentir a vida,
a única cor, a única forma: agora acabou.
Sobrevivemos: e é a confusão
de uma vida renascida fora da razão.
Te suplico, ah, te suplico: não queiras
morrer”
(P.P.Pasolini, Súplica à minha mãe, 1962)
Luz pulsante, passageira, frágil. Há
décadas, eu e Odemar passávamos a maior parte da noite observando o encontro
dos vaga-lumes em Barra do Jacuípe. Aquele brilho deles no escuro era algo
mágico. Hoje os cientistas afirmam que esses insetos estão em risco de
extinção. Eles são icônicos, usam o seu brilho, a bioluminescência, para atrair
parceiros e se reproduzir. O desmatamento, pesticidas, poluição visual provocada
pela luz artificial são os principais responsáveis.
A partir do artigo dos Vaga-Lumes, escrito
por Pier Paolo Pasolini em 1975, o escritor francês Georges Didi-Huberman
defende a sobrevivência da experiência e da imagem, em um texto que representa
uma grande guinada na história da arte. Sobrevivência de vaga-lumes (Editora
UFMG) analisa obra de Pasolini, estabelecendo conexões com o pensamento de
outros intelectuais, especialmente o de Giorgio Agamben. Os vaga-lumes
representam as diversas formas de resistência da cultura, do pensamento e do
corpo diante das luzes ofuscantes do poder da política, da mídia e da
mercadoria. A visão apocalíptica de Pasolini, expressa em sua afirmativa “não
existem mais seres humanos”, e a de Agamben, segundo o qual o homem
contemporâneo está “desprovido de sua experiência”, constituem um dos eixos da
discussão estabelecida por Didi-Huberman. O autor recorre ao trabalho de Walter
Benjamim ´Imagem Dialética´ para demonstrar que a experiência ainda é possível
no mundo contemporâneo.
Em fevereiro de 1975, alguns meses antes
de sua morte, Pier Paolo Pasolini, publicou no Corriere della Sera um texto
intitulado O vazio do poder na Itália ou O artigo dos vagalumes. Como ele mesmo
afirma, a figura do vagalume, e seu desaparecimento, é uma maneira
poético-literária de caracterizar forças de resistência durante a permanência e
as metamorfoses dos regimes totalitários. Os vagalumes de Roma que, mesmo em
meio ao fascismo anterior à segunda guerra, faziam suas aparições e
desaparições, a partir dos anos 60 caminham em direção à extinção total. Amparado
por teorias marxistas, Pasolini vê, nos anos 70 italiano, na afirmação da
sociedade de consumo, uma nova face, ainda mais atroz, do fascismo. Um fascismo
que se instaura em um vazio de poder, ou melhor, em um poder ocupado por
lideranças vazias.
A metáfora apocalíptica de Pasolini serve
prontamente a um certo entendimento de morte ou fim da arte. Os vagalumes
seriam ofuscados e exterminados por uma sociedade de consumo que fere
atrozmente as pluralidades e elimina qualquer chance de resistência. O
cineasta, no fim da vida, deve ter estado entre aqueles (poucos) que creram na
extinção total da arte na época moderna
A questão dos vaga-lumes é, para o autor,
antes de tudo política e histórica. A beleza inocente dos jovens que dançam
(tremeluzem) sobre a luz dos holofotes não é meramente uma questão estética,
mas política, biopolítica para sermos mais precisos, dado que os discursos são
extraídos de sua condição formal e se encarnam nos corpos resistentes que
“esgotam a vida” em seus gestos e movimentos. Para Pasolini “aniquilados pela
noite – ou pela luz ‘feroz’ dos projetores – do fascismo triunfante”. Para o
poeta, sobre as ruínas do fascismo ergue-se um terror ainda mais profundo, um
tipo de fascismo “radicalmente novo”, mais astuto e centrado na eficiência das
relações mercantis e no utilitarismo de suas ações.
“Não vivemos em apenas um mundo, mas entre
dois mundos pelo menos. O primeiro está inundado de luz, o segundo atravessado
por lampejos” texto de Didi-Huberman que trata da sobrevivência dos vaga-lumes
como a metáfora do ser humano que resiste, apesar de tudo. Ao nomear uma
comunidade de intelectuais-vaga-lumes, Didi-Huberman, tendo como aliados Rosa,
Bernanos e Clarice, pretende organizar o pessimismo moderno e sustentar um
espaço de imagens artísticas contra-ideológicas e subjetivas que visam a minar
a fúria atual das pressões obscurantistas. Na pedra de amolar do silêncio, os
escritores e nossa escritora desejam afiar o olhar livre e ágil que observa as
poucas imagens que, minúsculas e fugidias, transitam próximas a nós.
No passado, fora possível resistir ao
fascismo histórico com a luzinha verde do vaga-lume. Mas o novo fascismo,
afirma o poeta italiano Pasolini, é terrível: “combate os valores, as almas, as
linguagens, os gestos e os corpos do povo”. Analisa Didi-Huberman: “nos últimos
anos de vida, Pasolini se vê constrangido a abjurar o saber-vaga-lume, que
tinha sido o alicerce de toda sua energia poética, cinematográfica e política”.
Os brilhos (ou lampejos de esperança) desapareceram
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