16 junho 2021

Sobrevivência dos vaga-lumes

“Era o único modo de sentir a vida,

a única cor, a única forma: agora acabou.

Sobrevivemos: e é a confusão

de uma vida renascida fora da razão.

Te suplico, ah, te suplico: não queiras morrer”

                                                   (P.P.Pasolini, Súplica à minha mãe, 1962)

 

Luz pulsante, passageira, frágil. Há décadas, eu e Odemar passávamos a maior parte da noite observando o encontro dos vaga-lumes em Barra do Jacuípe. Aquele brilho deles no escuro era algo mágico. Hoje os cientistas afirmam que esses insetos estão em risco de extinção. Eles são icônicos, usam o seu brilho, a bioluminescência, para atrair parceiros e se reproduzir. O desmatamento, pesticidas, poluição visual provocada pela luz artificial são os principais responsáveis.

 


A partir do artigo dos Vaga-Lumes, escrito por Pier Paolo Pasolini em 1975, o escritor francês Georges Didi-Huberman defende a sobrevivência da experiência e da imagem, em um texto que representa uma grande guinada na história da arte. Sobrevivência de vaga-lumes (Editora UFMG) analisa obra de Pasolini, estabelecendo conexões com o pensamento de outros intelectuais, especialmente o de Giorgio Agamben. Os vaga-lumes representam as diversas formas de resistência da cultura, do pensamento e do corpo diante das luzes ofuscantes do poder da política, da mídia e da mercadoria. A visão apocalíptica de Pasolini, expressa em sua afirmativa “não existem mais seres humanos”, e a de Agamben, segundo o qual o homem contemporâneo está “desprovido de sua experiência”, constituem um dos eixos da discussão estabelecida por Didi-Huberman. O autor recorre ao trabalho de Walter Benjamim ´Imagem Dialética´ para demonstrar que a experiência ainda é possível no mundo contemporâneo.

 


Em fevereiro de 1975, alguns meses antes de sua morte, Pier Paolo Pasolini, publicou no Corriere della Sera um texto intitulado O vazio do poder na Itália ou O artigo dos vagalumes. Como ele mesmo afirma, a figura do vagalume, e seu desaparecimento, é uma maneira poético-literária de caracterizar forças de resistência durante a permanência e as metamorfoses dos regimes totalitários. Os vagalumes de Roma que, mesmo em meio ao fascismo anterior à segunda guerra, faziam suas aparições e desaparições, a partir dos anos 60 caminham em direção à extinção total. Amparado por teorias marxistas, Pasolini vê, nos anos 70 italiano, na afirmação da sociedade de consumo, uma nova face, ainda mais atroz, do fascismo. Um fascismo que se instaura em um vazio de poder, ou melhor, em um poder ocupado por lideranças vazias.

 

A metáfora apocalíptica de Pasolini serve prontamente a um certo entendimento de morte ou fim da arte. Os vagalumes seriam ofuscados e exterminados por uma sociedade de consumo que fere atrozmente as pluralidades e elimina qualquer chance de resistência. O cineasta, no fim da vida, deve ter estado entre aqueles (poucos) que creram na extinção total da arte na época moderna

 


A questão dos vaga-lumes é, para o autor, antes de tudo política e histórica. A beleza inocente dos jovens que dançam (tremeluzem) sobre a luz dos holofotes não é meramente uma questão estética, mas política, biopolítica para sermos mais precisos, dado que os discursos são extraídos de sua condição formal e se encarnam nos corpos resistentes que “esgotam a vida” em seus gestos e movimentos. Para Pasolini “aniquilados pela noite – ou pela luz ‘feroz’ dos projetores – do fascismo triunfante”. Para o poeta, sobre as ruínas do fascismo ergue-se um terror ainda mais profundo, um tipo de fascismo “radicalmente novo”, mais astuto e centrado na eficiência das relações mercantis e no utilitarismo de suas ações.

 


“Não vivemos em apenas um mundo, mas entre dois mundos pelo menos. O primeiro está inundado de luz, o segundo atravessado por lampejos” texto de Didi-Huberman que trata da sobrevivência dos vaga-lumes como a metáfora do ser humano que resiste, apesar de tudo. Ao nomear uma comunidade de intelectuais-vaga-lumes, Didi-Huberman, tendo como aliados Rosa, Bernanos e Clarice, pretende organizar o pessimismo moderno e sustentar um espaço de imagens artísticas contra-ideológicas e subjetivas que visam a minar a fúria atual das pressões obscurantistas. Na pedra de amolar do silêncio, os escritores e nossa escritora desejam afiar o olhar livre e ágil que observa as poucas imagens que, minúsculas e fugidias, transitam próximas a nós.

 

No passado, fora possível resistir ao fascismo histórico com a luzinha verde do vaga-lume. Mas o novo fascismo, afirma o poeta italiano Pasolini, é terrível: “combate os valores, as almas, as linguagens, os gestos e os corpos do povo”. Analisa Didi-Huberman: “nos últimos anos de vida, Pasolini se vê constrangido a abjurar o saber-vaga-lume, que tinha sido o alicerce de toda sua energia poética, cinematográfica e política”. Os brilhos (ou lampejos de esperança) desapareceram

 

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