26 março 2010

Música & Poesia, Música & Poesia

O Estrangeiro (Caetano Veloso)


O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara

O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela

A Baía de Guanabara

O antropólogo Claude Levy-strauss detestou a Baía de Guanabara:

Pareceu-lhe uma boca banguela.

E eu menos a conhecera mais a amara?

Sou cego de tanto vê-la, te tanto tê-la estrela

O que é uma coisa bela?


O amor é cego

Ray Charles é cego

Stevie Wonder é cego

E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem


Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?

Uma arara?

Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara

Em que se passara passa passará o raro pesadelo

Que aqui começo a construir sempre buscando o belo e o amaro

Eu não sonhei que a praia de Botafogo era uma esteira rolante deareia brancae de óleo diesel

Sob meus tênis

E o Pão de Açucar menos óbvio possível

À minha frente

Um Pão de Açucar com umas arestas insuspeitadas

À áspera luz laranja contra a quase não luz quase não púrpura

Do branco das areias e das espumas

Que era tudo quanto havia então de aurora


Estão às minhas costas um velho com cabelos nas narinas

E uma menina ainda adolescente e muito linda

Não olho pra trás mas sei de tudo

Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo

Mas eu não desejo ver o terno negro do velho

Nem os dentes quase não púrpura da menina

(pense Seurat e pense impressionista

Essa coisa de luz nos brancos dentes e onda

Mas não pense surrealista que é outra onda)


E ouço as vozes

Os dois me dizem

Num duplo som

Como que sampleados num sinclavier:


"É chegada a hora da reeducação de alguém

Do Pai do Filho do espirito Santo amém

O certo é louco tomar eletrochoque

O certo é saber que o certo é certo

O macho adulto branco sempre no comando

E o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo

Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita

Riscar os índios, nada esperar dos pretos"

E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento

Sigo mais sozinho caminhando contra o vento

E entendo o centro do que estão dizendo

Aquele cara e aquela:


É um desmascaro

Singelo grito:

"O rei está nu"

Mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que o rei é mais bonito nú


E eu vou e amo o azul, o púrpura e o amarelo

E entre o meu ir e o do sol, um aro, um elo.

("Some may like a soft brazilian singer

but i've given up all attempts at perfection").



Elegia: indo para o leito (John Donne)


Vem, Dama, vem que eu desafio a paz;

Até que eu lute, em luta o corpo jaz.

Como o inimigo diante do inimigo,

Canso-me de esperar se nunca brigo.

Solta esse cinto sideral que vela,

Céu cintilante, uma área ainda mais bela.

Desata esse corpete constelado,

Feito para deter o olhar ousado.

Entrega-te ao torpor que se derrama

De ti a mim, dizendo: hora da cama.

Tira o espartilho, quero descoberto

O que ele guarda quieto, tão de perto.

O corpo que de tuas saias sai

É um campo em flor quando a sombra se esvai.

Arranca essa grinalda armada e deixa

Que cresça o diadema da madeixa.

Tira os sapatos e entra sem receio

Nesse templo de amor que é o nosso leito.

Os anjos mostram-se num branco véu

Aos homens. Tu, meu anjo, és como o Céu

De Maomé. E se no branco têm contigo

Semelhança os espíritos, distingo:

O que o meu Anjo branco põe não é

O cabelo mas sim a carne em pé.

Deixa que minha mão errante adentre.

Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.

Minha América! Minha terra a vista,

Reino de paz, se um homem só a conquista,

Minha Mina preciosa, meu império,

Feliz de quem penetre o teu mistério!

Liberto-me ficando teu escravo;

Onde cai minha mão, meu selo gravo.

Nudez total! Todo o prazer provém

De um corpo (como a alma sem corpo) sem

Vestes. As jóias que a mulher ostenta

São como as bolas de ouro de Atalanta:

O olho do tolo que uma gema inflama

Ilude-se com ela e perde a dama.

Como encadernação vistosa, feita

Para iletrados a mulher se enfeita;

Mas ela é um livro místico e somente


A alguns (a que tal graça se consente)

É dado lê-la. Eu sou um que sabe;

Como se diante da parteira, abre-

Te: atira, sim, o linho branco fora,

Nem penitência nem decência agora.

Para ensinar-te eu me desnudo antes:

A coberta de um homem te é bastante.



A Cama e a TV (Péri)


A paisagem que a tv me cala todos os dias, colando a noite

Uma menina esquálida sem rosto sem telefone

Ou nome que dê alegria a que a viu mas não entende quase nada

Uma janela na cabeça tela plana inteira

O preto e o branco em guerra nas cores de bombas na escuridão

Princípios do fim, na onda da televisão

Eu não entendo mais

Sua palavra é o verbo forte da minha alegria, a paz na vida

Mas o índio nu de cara pálida azul de fome

Nos conduz a um mar de becos sem saída num caminho que não continua

A imagem vesga da tristeza a morte derradeira

O não e o sim no olho na cara na boca no coração

O meio do fim, na mira da televisão


Viva vai a vida captando a vida

Via satélite para todo mundo ver

Num quarto escuro

A cama e a tv não param de dizer que tudo rola

Mesmo que as pedras nunca rolem por você


Eu não entendo mais

A solidão no quadro a quadro da melancolia, num breve slow motion

Os meus amigos voam e eu não posso mais ficar aqui a esperar

Sentado à beira do caminho

Só quero um pouco de carinho e tudo mais que vale a pena

Meu cinema, a sombra da noite e o sol partindo a manhã

Brilhando na minha cama.


Segunda Elegia, Terceira Sede (Fabricio Carpinejar)


Ser inteiro custa caro.

Endividei-me por não me dividir.

Atrás da aparência, há uma reserva de indigência,

a volúpia dos restos.


Parto em expedição às provas de que vivi.

E escavo boletins, cartas e álbuns

- o retrocesso da minha letra ao garrancho.


O passado tem sentido se permanecer desorganizado.

A verdade ordenada é uma mentira.


O musgo envaidece as relíquias. Os dedos retiram as teias,

assisto à revoada de insetos das ciladas.

Fujo da claridade, refulge a poeira.

O par de joelhos na imobilidade de um rochedo.


Reviso o testamento, alisando a textura

como um gramático da seda.

Desvendo o que presta pelo som do corte.


O que ansiava achar não acho

e esbarro em objetos despossuídos de lógica

que me encontram antes de qualquer pretensão.



O que fiz cabe numa caixa de sapatos.


Colecionava talhos de madeira, bonecos

adornados com a ponta miúda do canivete.

Lá estava um dos sobreviventes, desfocado,

vizinho das medalhas escolares

e dos parafusos condoídos de ferrugem.


Um auto-retrato não seria tão fidedigno.

Eu era aquela frincha de chão florido, casca e húmus.



Quantas foram as miudezas que não combinavam

com o conjunto e, na falta de harmonia,

abandonei no depósito da infância?


E se faltou confiança para restaurá-las ao convívio,

faltou coragem para excluí-las em definitivo.


Somos o desperdício do que estocamos.

Não aprendemos a desaprender.

Não doamos nada, nem a palavra passamos adiante.


O porão tem vida própria e respira

o que jogamos fora.

O que refugamos na ceia volta a nos mastigar.

Tudo pode fermentar: o forro, os passos, o odor do braço.

Tudo pode nascer sem o mérito do grito,

como um murmúrio ou estalar de um abraço.

Tudo pode nascer, ainda que abafado.

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2 comentários:

Cathy disse...

"Ser inteiro custa caro.Endividei-me por não me dividir..."
Carpinejar pensou em nós, quando escreveu isso...rs

Deixo-te mais um pouco com Carpinejar:

"Não desisto de me encontrar onde não estou"

"Quero morrer sem sobrar vida para contar"

um beijo de bom dia!

Cathy disse...

"Ser inteiro custa caro.Endividei-me por não me dividir..."
Carpinejar pensou em nós, quando escreveu isso...rs

Deixo-te mais um pouco com Carpinejar:

"Não desisto de me encontrar onde não estou"

"Quero morrer sem sobrar vida para contar"

um beijo de bom dia!