Transitando com desenvoltura por todas várias linguagens (cinema, vídeo, teatro, música, pintura, arquitetura e design), Peter Greenaway é hoje, mais que um respeitado diretor de cinema, um dos mais conceituados artistas multimídia. Em seu filme “O Livro de Cabeceira” são abordados questões impactantes como o desejo incestuoso, a necessidade do fetiche na busca do prazer, a bissexualidade, o rompimento com as tradições, a promiscuidade, etc. No entanto, esses temas são abordados de forma tão sutil, são fatos tão normais dentro do enredo, que chega a ser corriqueiros. Greenaway sabe o que faz, ele brinca com o espectador o tempo todo, brinca com os valores sociais de forma tão magistral que propõe alternativas a eles sem colocá-los como errados. Em sua obra, o absurdo é banal e o socialmente reprovável é rotineiro, como na vida real.
O contato da caneta – ou do pincel – com o papel, tão sensual quanto o toque entre dois amantes, é o foco do filme do cineasta inglês Peter Greenaway. Livro de Cabeceira (1996) – resgata a arte da caligrafia como símbolo da relação do corpo com o pensamento. O filme conta a história de Nagiko, uma mulher apaixonada pela caligrafia ideográfica oriental, que obtém prazer escrevendo sobre os corpos dos seus amantes. Filha de um calígrafo e escritor japonês de Kyoto, Nagiko aprendeu a amar a caligrafia com o pai, que festejava os aniversários da filha escrevendo versos em seu rosto e em suas costas. Depois de fugir de um casamento precoce e desastroso com o sobrinho do editor do seu pai, torna-se uma bem sucedida top model em Hong Kong, e tenta obter, num mesmo ato, os prazeres proporcionados pelo corpo e pela literatura.
Como no mito bíblico, no princípio era o verbo que, depois, se fez carne. Nagiko escreve sobre o corpo do amante inglês Jerome para que possa lê-lo e amá-lo convenientemente. Esse foi o estratagema inventado pelo próprio Jerome para convencer o editor, que havia se recusado a publicar a obra de Nagiko. Sem a inscrição, nada de sedução, sem a caligrafia, nada de ereção. Antes do pênis, a pena, o pincel, a caneta. Mas um não existe sem o outro, um depende do outro, para escrever, para amar, para escrever como quem ama. Afinal, trata-se de uma mesma energia erótica, compartilhada pelos amantes-escreventes, uma única excitação. O corpo do amante, sua pele, não só serve de suporte, mas transforma-se em página mesmo, em papel, em pergaminho – em livro. Um corpo de amor e de escrita, que porta a escrita do amor, e que, mais além, caminha para se tornar um corpo escrito, circulante, visceral – portanto, erótico. (“O cheiro de papel branco é como o odor da pele de um novo amante”, uma das frases lapidares de Nagiko). Assim é o cinema de Greenaway, a um só tempo, auditivo, visual, gustativo, olfativo e tátil.
Como todos os filmes do diretor de O Bebê Santo de Macon, o refinamento estético é levado à última conseqüência – em O Livro de Cabeceira, Greenaway superpõe imagens na tela e incorpora as legendas em caligrafia caprichada à própria imagem. O filme remonta à tradição milenar de um gênero da literatura erótica japonesa: os livros de cabeceira, diários de gueixas com suas experiências sexuais.
Baseado na vida e obra da escritora japonesa do final do século 10 (Sei Shonagon), retrata rituais de caligrafia no corpo humano. Numa sociedade dominada pelos homens, em que a mulher era considerada integrante de uma classe inferior, Sei ousou escrever um livro explorando as possibilidades do corpo de seu amante. Isso pareceu revolucionário para Greenaway. No filme de Greenaway, a escritora (considerada liberal demais para sua época) é representada como uma top model dos dias atuais. Fascinada pela união corpo-palavra, ela coleciona amantes e impõe rituais de caligrafia em seus relacionamentos. Seus parceiros não são avaliados pelo desempenho sexual, mas sim pela habilidade em registrar textos na carne.
O modo como o cineasta conta essa estória, tão carregada de referências rituais e simbólicas, consegue ser ainda mais original. Pela sua realização plástico-visual onde Greenaway “escreve” cada seqüência do filme com a minúcia e elegância de um calígrafo japonês. Cada superposição de imagens parece “graficamente” elaborada. É o cinema das metáforas visuais. Todos os sentidos no filme de Peter brotam, o tempo inteiro, desse contexto metafórico no qual se pode falar dos prazeres da carne como os da literatura; da pele como papel; do corpo como o livro no qual se inscrevem (se “escreve”) as inquietações mais profundas de nossas almas; dos nossos próprios media (livros, pintura, fotografia, cinema) como “pele da cultura”.
“Quis fazer um filme que unisse o prazer da literatura e o prazer da carne. Só isso”, afirmou Greenaway ao jornalista Wladimir Weltman. “A maioria de meus filmes trata dessa minha ansiedade de combinar imagem e texto. Uma das coisas que sempre me fascinou é a noção de que as letras do alfabeto japonês são caracteres e significado ao mesmo tempo. Elas são imagens e texto, simultaneamente. Podem ser lidas como texto e vistas como imagens. Não seria esse um bom exemplo a seguir na hora de inventar o cinema? Esse foi o ponto de partida – usar essa metáfora oriental, japonesa, para começar o filme. Há muito tempo queria fazer um filme ambientado num espaço japonês”. Para fugir do cinema tradicional, Greenaway prefere surpreender, confundir, intrigar, chocar ou mesmo enfurecer o público – ‘tudo, menos agradar”.
O contato da caneta – ou do pincel – com o papel, tão sensual quanto o toque entre dois amantes, é o foco do filme do cineasta inglês Peter Greenaway. Livro de Cabeceira (1996) – resgata a arte da caligrafia como símbolo da relação do corpo com o pensamento. O filme conta a história de Nagiko, uma mulher apaixonada pela caligrafia ideográfica oriental, que obtém prazer escrevendo sobre os corpos dos seus amantes. Filha de um calígrafo e escritor japonês de Kyoto, Nagiko aprendeu a amar a caligrafia com o pai, que festejava os aniversários da filha escrevendo versos em seu rosto e em suas costas. Depois de fugir de um casamento precoce e desastroso com o sobrinho do editor do seu pai, torna-se uma bem sucedida top model em Hong Kong, e tenta obter, num mesmo ato, os prazeres proporcionados pelo corpo e pela literatura.
Como no mito bíblico, no princípio era o verbo que, depois, se fez carne. Nagiko escreve sobre o corpo do amante inglês Jerome para que possa lê-lo e amá-lo convenientemente. Esse foi o estratagema inventado pelo próprio Jerome para convencer o editor, que havia se recusado a publicar a obra de Nagiko. Sem a inscrição, nada de sedução, sem a caligrafia, nada de ereção. Antes do pênis, a pena, o pincel, a caneta. Mas um não existe sem o outro, um depende do outro, para escrever, para amar, para escrever como quem ama. Afinal, trata-se de uma mesma energia erótica, compartilhada pelos amantes-escreventes, uma única excitação. O corpo do amante, sua pele, não só serve de suporte, mas transforma-se em página mesmo, em papel, em pergaminho – em livro. Um corpo de amor e de escrita, que porta a escrita do amor, e que, mais além, caminha para se tornar um corpo escrito, circulante, visceral – portanto, erótico. (“O cheiro de papel branco é como o odor da pele de um novo amante”, uma das frases lapidares de Nagiko). Assim é o cinema de Greenaway, a um só tempo, auditivo, visual, gustativo, olfativo e tátil.
Como todos os filmes do diretor de O Bebê Santo de Macon, o refinamento estético é levado à última conseqüência – em O Livro de Cabeceira, Greenaway superpõe imagens na tela e incorpora as legendas em caligrafia caprichada à própria imagem. O filme remonta à tradição milenar de um gênero da literatura erótica japonesa: os livros de cabeceira, diários de gueixas com suas experiências sexuais.
Baseado na vida e obra da escritora japonesa do final do século 10 (Sei Shonagon), retrata rituais de caligrafia no corpo humano. Numa sociedade dominada pelos homens, em que a mulher era considerada integrante de uma classe inferior, Sei ousou escrever um livro explorando as possibilidades do corpo de seu amante. Isso pareceu revolucionário para Greenaway. No filme de Greenaway, a escritora (considerada liberal demais para sua época) é representada como uma top model dos dias atuais. Fascinada pela união corpo-palavra, ela coleciona amantes e impõe rituais de caligrafia em seus relacionamentos. Seus parceiros não são avaliados pelo desempenho sexual, mas sim pela habilidade em registrar textos na carne.
O modo como o cineasta conta essa estória, tão carregada de referências rituais e simbólicas, consegue ser ainda mais original. Pela sua realização plástico-visual onde Greenaway “escreve” cada seqüência do filme com a minúcia e elegância de um calígrafo japonês. Cada superposição de imagens parece “graficamente” elaborada. É o cinema das metáforas visuais. Todos os sentidos no filme de Peter brotam, o tempo inteiro, desse contexto metafórico no qual se pode falar dos prazeres da carne como os da literatura; da pele como papel; do corpo como o livro no qual se inscrevem (se “escreve”) as inquietações mais profundas de nossas almas; dos nossos próprios media (livros, pintura, fotografia, cinema) como “pele da cultura”.
“Quis fazer um filme que unisse o prazer da literatura e o prazer da carne. Só isso”, afirmou Greenaway ao jornalista Wladimir Weltman. “A maioria de meus filmes trata dessa minha ansiedade de combinar imagem e texto. Uma das coisas que sempre me fascinou é a noção de que as letras do alfabeto japonês são caracteres e significado ao mesmo tempo. Elas são imagens e texto, simultaneamente. Podem ser lidas como texto e vistas como imagens. Não seria esse um bom exemplo a seguir na hora de inventar o cinema? Esse foi o ponto de partida – usar essa metáfora oriental, japonesa, para começar o filme. Há muito tempo queria fazer um filme ambientado num espaço japonês”. Para fugir do cinema tradicional, Greenaway prefere surpreender, confundir, intrigar, chocar ou mesmo enfurecer o público – ‘tudo, menos agradar”.
3 comentários:
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