26 junho 2006

Uma terra ao mesmo tempo singular e plural

Quando os portugueses aqui chegaram, cheios de sarnas, desdentados e podres de não tomar banhos ficaram maravilhados com todo aquele cenário da natureza. Eles vinham das terras sem males e encontraram um povo bonito e disponível, sexualmente disponível. A epiderme falou mais alto e a mistura de raças aconteceu. Naquela época não havia essa coisa de pecado, de proibição. Quase tudo era permitido. Mas os raivosos jesuítas chegaram e resolveram não só escrever uma gramática tupi como impuseram a idéia da morte e ressurreição de Cristo.

Em seguida Tomé de Souza começa a construção de Salvador e nos séculos seguintes, a cidade se transforma num grande púlpito de igreja. É igreja para tudo quanto é lado e um temor violento do pecado. O nosso quotidiano oferece tantas sugestões eróticas, como nossa mania de falar tocando nas pessoas, o riso fácil, as roupas sumárias (verão o ano inteiro), nossa despreocupada habilidade de pontuar as frases com palavrões.

O estrangeiro vem triste, buscando algo perdido e, aí no caso, o que está perdido é a sua sexualidade espontânea. Em luto, tem que rir do efeito cômico do gesto obsceno e esquece sua dor. Ensinamos ao estrangeiro triste a nossa técnica de apaziguamento da dor. Terminamos por acreditar que não temos dor e, como bons fingidores, acreditamos que nós não sofremos e que estamos acima de tudo isso.

Assim, Salvador nasceu de um sonho. O monarca lusitano D.João III sonhava em edificar uma capital portuguesa nas Américas. Sem nunca ter colocado os pés por essas bandas, ele conhecia a cidade através das crônicas de Gabriel Soares de Souza, que traduzia para o rei, em cartas poéticas, toda a beleza selvagem da cidade erguida sobre a montanha. Outros viajantes estrangeiros que desembarcaram aqui fizeram verdadeiras campanhas de marketing mais eficientes da história. A pedido do rei, através das cartas dos cronistas do século XVI, Tomé de Souza faz a travessia no Mar das Tormentas, chega ao Porto da Barra e, logo em seguida, começa a erguer a cidade encomendada, traçada com antecedência pelo mestre de obras Luiz Dias.

A cidade do Salvador nasceu como fortaleza. Ao longo do tempo esses fortes orlaram a face oeste da Baía de Todos os Santos e, até em altos mais para a terra, foram construídos para comprovar a defesa da Capital do Império Português ao Sul do Equador. Se antes exerciam funções militares, hoje são relíquias arquitetônicas e históricas compondo o arsenal da cidade como testemunhando o muito que desempenharam em sua história.

Descoberta pela flotilha comandada pelo navegador português Gonçalo Coelho, a Baía de Todos os Santos (um local paradisíaco de 1.052 km2 de águas límpidas e de um conjunto de ilhas e praias) foi transformada anos depois no principal porto do hemisfério sul no período do Brasil colônia. De lugares paradisíacos e de beleza natural intacta, a baia abriga, pelo menos, 56 ilhas e uma centena de praias e lugarejos, proporcionando muito lazer aos visitantes e aos nativos moradores. Nas ilhas de Itaparica, do Medo e dos Frades, os visitantes podem aproveitar um pouco as belezas naturais da baía.

A cidade já erguida fervilhava com o vaivém de carregadores, carroceiros, navios a vapor no porto, vendedoras de mingau, saraus literários em casas ilustres da Vitória e passeios campestres nos arrabaldes do Porto da Barra. Privado de ver a cidade, Junqueira Freire a projeta nas suas rimas. Da cela do mosteiro de São Bento, o poeta escandalizou a sociedade da época com seus versos lascivos sobre Salvador. Mas ele não advinha que a antiga Princesa das Montanhas não era mais a preferida do sultão, posto perdido para o Rio de Janeiro, capital do império. Morreu de tesão por Salvador. Além de Freire, o alagoano Jorge de Lima, na década de 20 do século passado, queria se perder nas “curvas gostosas da cidade mais bonita do Brasil”. E até o mineiro Carlos Drummond de Andrade, que nunca veio à Bahia, reconhecia a necessidade de escrever sobre ela.

Mas não é só de empolgação que a cidade viveu, o satírico Gregório de Mattos, em suas rimas criticou os costumes e personagens baianos. O Boca do Inferno incomodou tanto que foi expulso da cidade. Séculos depois, Cuíca de Santo Amaro usava o cordel para cantar os podres das ilustres figuras da cidade. O encanto com a paisagem física de Salvador vai acompanhar outras gerações de escritores posteriores ao século XIX. E Jorge Amado, através do olhar apaixonado de seus personagens, deixa transparecer a sedução que a cidade exerceu sobre ele a vida inteira.

Salvador é um presépio, armado na encosta da montanha, equilibrado nas ladeiras. Seus dois andares, separados por uma escarpa de 20 quilômetros de extensão e 80 metros de altura - Cidade Alta e Cidade Baixa, a primeira cheia de história, com seus sobradões coloniais e igrejas, a segunda com a magia do mar e do movimento do porto – fazem desta cidade uma das mais belas do Brasil. O seu povo, plural na sua etnia e singular nas suas manifestações. Salvador é singular porque é plural. A Bahia é plural na sua diversidade de religiões e singular na tolerância da coexistência das mesmas respeitando a opção dos indivíduos que as praticam. É muito comum na Bahia ser católico e adepto da umbanda ao mesmo tempo, independente de sua cor ou classe social. As próprias festas católicas têm também sua versão profana.

4 comentários:

Anônimo disse...

Very pretty design! Keep up the good work. Thanks.
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Anônimo disse...

Great site loved it alot, will come back and visit again.
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Anônimo disse...

Muito Bom mesmo esse texto...Parabéns!!!!

Gutemberg disse...

Obrigado pela leitura. e continue lendo e sugerindo idéias.
Um abraço
Gutemberg