29 maio 2024

Salvador pelo olhar estrangeiro

 

 

 

Quando Salvador foi fundada em 1549 a ideia principal do projeto português era torná-la não apenas uma cidade fortaleza, mas o mais importante símbolo do império português nas Américas. Por conta da sua história sociopolítica, a Bahia se transformou num território multifacetado. A combinação de lentidão, tranquilidade e a sensação de acolhimento e segurança provocada pela natureza local foi um dos principais motivos da escolha deste sítio como sede da capital colonial. Assim Salvador passou a ser porta de passagem, local de troca, de efetivação de contatos e relações, ponto para onde convergia boa parte da produção regional, que daí escoava para outras cidades, estados e países. E as formas de saudar o sagrado (seja com palavras, ações ou uso de objetos) seja nos rituais católicos ou religiosidade de origem africano, as duas tradições aparecem convivendo ou justapostas. O sincretismo é a grande marca de religiosidade local. A mistura foi um resultado natural da convivência entre duas tradições ricas (a ibérica, católica e a africana com a religião dos orixás nagós).

 


Para muitos o sincretismo foi um recurso que os negros encontraram para salvaguardar suas tradições. A beleza da cidade, do imenso mar azul, das igrejas e sobrados reduziram o estrangeiro. O povo com seus costumes e festas foi outro fator decisivo para eles se estabeleceram aqui. Os hábitos alimentares afro-baianos, o modo de celebrar, a habilidade para a dança e a festa como construtora de identidade, conquistando uma participação expressiva seduziu a todos. Se a motivação é fundamentalmente religiosa pouco importa, basta seguir o cortejo de Santa Bárbara, atravessar a de Nossa Senhora da Conceição da Praia, Boa Viagem, Bom Jesus dos Navegantes, Lapinha, Bonfim, Ribeira, Rio Vermelho, Itapuã, Pituba até cair no som contagiante do trio elétrico ou no afoxé do Carnaval. É festa que não acaba mais.

 

Conhecida como a “Roma Negra”, e, também, como a maior cidade da diáspora atlântica. A incessante busca da África na Bahia tornou Salvador ainda mais africanizada o que ampliou a sua imagética de negritude. Salvador foi uma das cidades que recebeu forte influência do legado africano. A imagem da cidade de Salvador, enquanto lugar de religiosidade afro-brasileira, se consolidou nos idos de 1920 com a frase “Roma Negra” cunhada pela famosa Babalorixá Mãe Aninha - fundadora do Terreiro Ilê Axé Apó Afonjá - ao se referir a urbe como centro difusor da religião de matriz africana no Brasil. A frase metafórica de Mãe Aninha foi citada pela primeira vez por Edson Carneiro, no livro Negros Bantus (1937), quando buscou dar visibilidade à contribuição decisiva dos negros bantos (angolas e congos) na formação sociocultural do povo brasileiro. A expressão, posteriormente, foi utilizada pela antropóloga Ruth Landes em dois momentos: 1947, na obra Cidade das Mulheres e 1967, ao publicar os dois artigos: “O culto fetichista no Brasil” e “Escravidão negra e status feminino”.

 

Assim, São Salvador da Bahia de todos os Santos tem o epíteto de Roma Negra. É que se Roma é a capital da religião católica, Salvador, além de ser o Vaticano do candomblé, tem uma população maioritariamente negra e orgulhosa disso. A ancestralidade africana do povo de Salvador transpira, não apenas na melanina, mas sobretudo na admirável capacidade de manter tradições, manifestações culturais, formas de estar, de comer e de vestir, durante centenas de anos, contra a mais cruel das opressões – a escravatura.

 

A expressão “Roma Negra” passa a então a ter uma conotação política, ou seja, significa espaço de negritude, espaço de resistência. Essa nova metáfora possibilitou o despertar da cultura negra em Salvador, nos anos 1970. Desse modo, sua literatura, estética música, indumentária, dança, luta (capoeira), pintura, gravura, sua rica, saborosa e colorida culinária (tabuleiros das conhecidas baianas de acarajé), artesanato, arquitetura, paisagem urbana, praças, esquinas, adros de igrejas, terreiros de candomblé constituíram-se em verdadeiros lugares de resistências, de retomada das tradições, de reconstrução do saber viver, fazer e expressar os símbolos afro-brasileiros. A citação a matriarca da Roma Negra (na canção Reconvexo, de Caetano Veloso, gravada por sua irmã Maria Bethânia em 1989 no álbum Memória da Pele), faz referência a Eugênia Anna Santos, que foi uma expressiva Ialorixá do Estado da Bahia, descendente da Nação Grunce, que assim chamava Salvador por ser a metrópole com maior número de negros fora da África.



Em 2009 publiquei um livro, Bahia, um estado d´alma, para celebrar os 460 anos de Salvador onde explico que cada um a carrega afora à sua maneira. Cada um tem a sua Bahia. E em 2023 a Editora Solisluna publicou uma obra do artista chileno radicado na Bahia, Esteban Vivaldi. Trata-se de Roma Negra. No belo prefácio do escritor e jornalista José de Jesus Barreto ele informa: “Para filme bastaria uma trilha sonora – uns aboios na sanfona de Luiz, uns acordes minimalistas de João, aquela canção do mar de Caymmi. A obra Roma Negra, em quadrinhos, do chileno-italiano Esteban Vivaldi, é cinema puro. Desenhos em preto e branco, aquarelas. Cada quadrinho uma tomada, uma foto, com detalhes, movimento, pleno domínio da luz, traços, jogo ou brinquedo de claridades e sombreamentos contando, mostrando tudo. Arte. No roteiro, três histórias ou narrativas entrelaçadas, tendo como referência a Bahia, a Roma Negra ou Cidade da Bahia e o Mar, onde tudo começa, pelo desejo de sabê-lo, e onde tudo termina, abrigo dos mistérios e encantamentos. Não é um livro para se ler passando os olhos ou ver apressadamente. Os desenhos exigem apuro, sentimento, como apreciar um alvorecer no sertão o a imensidão azul do mar....”.

A primeira narrativa acontece no sertão baiano onde Dora pede para Zé lhe levar para ver o mar como presente de aniversário. Eles conversam embaixo do pé do umbuzeiro (pela importância de suas raízes foi chamada "árvore sagrada do Sertão" pelo escritor Euclides da Cunha). Eles viajam montados no cavalo chamado Dorival. No caminho a prosa do sertão vai virar mar e o mar virar sertão e descobre o circo e as maravilhas de uma trapezista. Em um outro momento da narrativa vemos um sujeito vendendo pintura e o resultado não poderia ser outra a não o desenho da mulher gravida (Mulata Grande, de 1980) de Carybé, argentino de nascimento, italiano de herança, brasileiro de criação e baiano por escolha de vida. Falsificação? É preciso ler com atenção. Voltando aos dois que querem ver o mar, Zé dá um belo presente a Dora, uma concha (elemento marítimo que representa a fecundidade, o prazer, a prosperidade e a sorte). Eles chegam ao Rio São Francisco, maior rio totalmente brasileiro e de extrema importância para a região Nordeste do país. Tomamos conhecimento das raízes das plantas que cura. Em 294 páginas os leitores acompanham os protagonistas se aventurando pelo universo da aquarela, numa jornada cheia de referências à arte.

 


O estilo que o artista imprime possui uma linha bem definida, estilo naturalista e em algumas ilustrações o uso de sombreamento intensivo. A aquarela é quase como uma assinatura nos trabalhos de Esteban e vemos em sua obra, uma característica leve, maneira como ele trabalha a pincelada, a combinação de claro e escuro e a própria paleta escolhida como características da identidade. A aquarela aguada é uma maneira tradicional de se utilizar tinta que é obtida compondo o pigmento com maior proporção de água, garantindo a transparência do material, conseguindo assim um movimento de fluidez, que composição baseada em mistura com água lhe proporciona uma característica leve, fluídica e muito sutil.  Há um ótimo jogo de luz e sombra. O uso das paisagens de Salvador, suas ruas, becos e ladeiras, o camelô invadindo a cidade, os fios entrelaçados nas ruas, os micos nos fios.... Tudo isso se complementam e levam o leitor a explorar a capacidade imaginativa ao folhear as páginas dessa obra.

Esteban Vivaldi é pai do Bruno e nasceu em Valparaíso, no Chile, em 1975. Viveu na Patagônia chilena antes de se mudar, em 1983, para a Itália. Em Roma, estudou cinema e trabalhou como editor e autor de documentários. Também cursou arquitetura em Veneza, sem exercer nunca essa profissão, mas ela o acompanha como um cachorro fiel. Sempre desenhou, desde pequeno e sem parar. Nos anos 90, esteve entre os pioneiros do grafite em Roma, cidade onde viveu toda a sua adolescência. Em 2014 mudou-se para o Brasil, seguindo um amor. Atualmente, trabalha como ilustrador e cineasta entre Brasil, Chile e Itália.

29 junho 2023

Novo livro da Noir: Traços da Diversidade

As histórias em quadrinhos estão cada vez mais presentes na vida das pessoas e seu público e produtores ficaram muito mais abrangentes e diversos nos últimos anos. Consequentemente, estão surgindo mais e mais HQs com histórias e personagens para todos os tipos de público. As narrativas criadas com temáticas feministas e LGBTQIA+ estão no centro dessa mudança e vêm para mostrar, de um jeito bastante acessível e atrativo ao público, histórias que não eram contadas antes.

 


O livro TRAÇOS DA DIVERSIDADE. De J.Carlos a Laerte mapeia experiências da comunidade LGBTI+ no Brasil através dos quadrinhos. É o novo livro da Editora Noir. O primeiro sobre quadrinhos LGBTQIA+ no Brasil! Um documento histórico. Os interessados podem pedir através do site: www.editoranoir.com.br. O envio é de até 72 horas. São histórias amorosas, de feitos profissionais, de viagens e reflexões aparecem de forma quase biográfica. O objetivo é fortalecer o sentimento de pertencimento, além de inspirar a população LGBTI+, costumeiramente alvo de preconceito e outras violências. O tema sexualidade saiu das mãos dos homens e passou, sobretudo, para as das mulheres. Com isso, autoras dedicaram-se, através de questões pessoais e coletivas, a (re) contar essa história, buscando muitas vezes justiças para os corpos apagados durante séculos. A obra apresenta desde as ilustrações de J.Carlos, do Amigo da Onça, Carlos Zefiro, passando pelos personagens de Henfil, Claudio Seto, Anita Costa Prado, Alice Pereira, Luiza de Souza, Henrique Magalhães, Adão, Mario Cesar,  Iturrusgarai, Laerte,  entre muitos outros.

A existência de temas caros a homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais é fruto de um movimento que começou, no Brasil, na década de 1970, com pequenas publicações alternativas, se reorganizou na década de 1980 em uma resposta à crise da Aids, e se tornou mais visível na década de 1990, abrindo espaço para conquistas de direitos. Mas essas conquistas vieram a partir de decisões do Poder Judiciário ou Executivo, e não de novas legislações propostas e aprovadas pelo Congresso — reflexo de um país conservador, que ainda registra recordes de agressões contra pessoas LGBTI+.

Na sigla do GLBT o T identifica, simultaneamente, travestis e transexuais homens e mulheres, mas não transgêneros. Intersexuais são aqueles que nascem com o sexo não claramente definido como masculino ou feminino. O símbolo + tem a função de abarcar todas as identidades inseridas nos espectros de gênero e sexualidade que não são cobertas pela sigla LGBTI (como queer, assexuais e outros). O diálogo sobre gênero nos quadrinhos desconstrói tabus e preconceitos, gerando reflexões e ações para o bem de todas as pessoas. Quando há debate, rompe o silenciamento que leva à desinformação, à opressão e à violência.


 

Como conhecer os quadrinistas LGBTQUIA+ se eles foram silenciados. Essa obra busca resgatar o apagamento da arte gráfica sobre o tema feito por homens e mulheres. Havia uma grande ausência das mulheres nas artes gráficas brasileira. Muitas vezes a figura por traz dos anônimos é uma mulher. Muitas anonimizavam seus trabalhos, por isso existe essa lacuna de dados de gênero. Essa lacuna é negativa para a pluralidade do gênero.

O objetivo é romper om o silencio. O mecanismo interno do silencio funciona como modelo. É uma relação de poder e firmeza para reforçar lugares de uns e o insucesso de outros. A produção desse conhecimento é para pensar o Brasil hoje. Como o silencio se constitui na subjetividade das pessoas LGBTQUIA+ os saberes produzidos por essas pessoas devem ser divulgados, compartilhar essas experiências no gesto de resistência e luta

24 maio 2023

O sentido de tudo: Rodolfo Zalla

 

Ao mudar-se para o Brasil no final de 1963 o argentino Rodolfo Zalla criou personagens marcantes como Zora, a Mulher Lobo e Johnny Pecos. Deu vida a seu próprio Drácula, reinventou figuras clássicas do terror como Múmia e Frankenstein. Produziu heróis e super heróis como Targo e O Escorpião. Foi um produtivo autor de quadrinhos de guerra, além de flertar com o erotismo nos anos 1980 e 1990. Editor, roteirista, desenhista, Zalla era um artista completo. Ao fazer meio século de carreira ele aceitou contar sua história. E o felizardo foi o jornalista e pesquisador Gonçalo Júnior. Rodolfo Zalla: O Sentido de Tudo é o título da obra lançado pela Editora Noir.

 


Seu primeiro trabalho de Zalla no Brasil saiu nas páginas da revista O Vingador. No segundo caderno do jornal Última Hora (SP) publicou tiras de quadrinhos Jacaré Mendonça, Amores Histórico Brasileiros etc. Mais tarde, na Gráfica e Editora Penteado (GEP) publicou quadrinhos na revista Estorias Negras. Para a Editora Taika criou diversas histórias de guerra no gibi Histórias de Combate, grande sucesso na segunda metade da década de 1960. Depois, Juvêncio, o Justiceiro. Targo foi o primeiro personagem de encomenda feito por Zalla no Brasil. Ele produziu para a Editora Outubro (mais tarde Taika), a partir de 1965. Deixou a Taika para se dedicar ao Estudio D-Arte a partir de 1967.

 

Esse argentino implantou no mercado um sistema profissional de produção para atender as editoras. Levou as historietas para os livros didáticos, tarefa que exerceu por mais de quatro décadas em importantes editoras. Essa biografia intimista traz um balanço dos seus 50 anos de carreira e fornece raro testemunho sobre os quadrinhos na Argentina e no Brasil, para onde se mudou às vésperas do golpe militar de 1964. Importantíssimo: o livro é fartamente ilustrado com fotos, desenhos e documentos. Traz também histórias de Zorro inédita (A Última Aventura), Targo (Roubou o sol!), Johnny Pecos (Incêndio na pradaria), Zora, a mulher lobo (O Mistério do Mausoleu, em 16 páginas), Drácula (O Amor de Drácula, em 18 páginas).

 

A importância de Zalla (1931-2016) para os quadrinhos brasileiros rendeu uma comovente homenagem pela editora Criativo em parceria com a AQC-SP, edição da coleção Sketch Book com a participação de mais de 160 artistas e articulistas especializado em HQs de todo o país que deram emocionados depoimentos sobre o artista. Esse trabalho também está registrado no livro de Gonçalo. Rodolfo Zalla: O Sentido de Tudo é uma obra que vale a pena conhecer.

 

26 dezembro 2022

Em busca do quadrinho perdido: bela viagem

 

O mais amado quadrinho franco-belga é tema de uma graphic novel afetiva, emotiva, visceral, mágica: Em Busca do Tintin Perdido, fantasia autobiográfica de Ricardo Leite e publicado pela Editora Noir.  Ler essa obra me fez voltar a infância, essa relação afetiva que tenho com os quadrinhos. Lembro-me da minha grande admiração em ler Luluzinha, Flecha Ligeira, Fantasma, Batman, Tarzan e muitas outras. As trocas das revistas. Antes das sessões dos seriados havia troca de gibis. Era uma felicidade total a troca de gibis. Os olhos brilhavam com aquelas aventuras dos heróis da nossa infância, do nosso imaginário. E como sonhava com aqueles gibis. Muitas vezes esquecia de toda aquela pobreza em volta para sonhar com esses mitos, esses deuses de nossa imaginação.

 


Mas voltando ao trabalho de Ricardo, ele fez um passeio pela historieta, uma espécie de tributo a essa mídia proporciona. Nesse universo encantado ele presta homenagem aos artistas criadores de personagens que abriram portas para o fantástico. E provaram que o sonho é tão real ou mais verdadeiro que a realidade.

 


A aventura tem como pano de fundo uma viagem a Bruxelas para visitar o Museu Hergé. Através dessa fantasia autobiográfica, ele convida o leitor a reviver a seu lado uma jornada mágica e inspiradora que despertou seu desejo adormecido de desenhar quadrinhos. Um resgate emocional! O artista passeia por suas memórias e revive encontros, imaginários ou não, com centenas de grandes mestres da 9ª Arte. Ao longo das páginas, eles discutem técnicas de desenho e falam sobre as diversas escolas de linguagem, passando pelos grandes festivais de Quadrinhos de Itália, França, Bélgica e Brasil. Um grande mergulho no universo mágico dessa mídia fabulosa!

 

Do Brasil ele presta homenagem aos pesquisadores Álvaro Moya, Gonçalo Jr, Moacy Cirne entre outros. Vai do quadrinho de Ângelo Agostini (Nhô Quim) a Ziraldo (Pererê, Menino Maluquinho). Passa pelo quadrinho escatológico de Marcatti, as inquietudes de Laerte, a luminosidade de Mozart Couto, o sombreamento de Julio Shimamoto, o estilizado traço de Flavio Colin, o humor anárquico de Angeli, o caligráfico Henfil, Mauricio de Sousa e muitos outros.

 


Abrir as páginas dessa obra foi um revival de prazeres, lembrar do desenho clássico de Alex Raymond, do experimentalismo de Robert Crumb, da magia de Manara, Moebius, Guido Crepax. O artista conta, com sensibilidade e maestria, a história de nossa infância pelos quadrinhos. Esse amor imenso. Ele nos propõe um permanente diálogo imaginário (sobre a arte, a técnica e a história dos Quadrinhos) com os grandes criadores, por vezes, baseado em encontros reais ou inspirados por numerosas leituras. Um resgate emocional. Vale a pena conferir!.