Ao longo da História, sob os regimes mais
obscurantistas, o crítico do lápis sempre esteve presente. Manoel Paraguassu,
K-Lunga, Nicolay Tischenko e seus colegas coube o mérito de registrar sob a
ópticas do humor, o período mais tumultuado da nossa história. A charge
política, introduzida na imprensa, tornou-se uma tradição, por vezes
interrompida por bloqueios políticos. Processado diversas vezes por políticos
que se sentiam caluniados, difamados e injuriados, o desenhista tinha muitos
fãs entre suas “vítimas”. No período de 1880 a 1890 a Bahia já publicava mais
de 50 periódicos humorísticos de pequeno formato e curta duração
A arte gráfica baiana sempre esteve
presente no nosso dia a dia, na mídia, nos blogs, no facebook, nos livros e
revistas, nos muros da cidade como grafite. Inserido na cultura urbana de forma
direta e indireta. Os quadrinhos influenciaram as pinturas de Juarez Paraíso,
Floriano Teixeira, Carybé, Chico Liberato entre outros e correram o mundo. Até
o poeta Castro Alves já rabiscava caricatura, assim como o maestro Lindembergue
Cardoso, o cineasta Glauber Rocha, e o diretor de teatro Márcio Meirelles. Por
pressão do mercado, alguns profissionais têm que pagar pela falta de opções e
pela imposição da dura realidade, onde a sobrevivência fala mais alto do que a
ideologia da liberdade total de criação.
Para os que ainda pensam que quadrinhos
são produzidos no Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná, A Bahia e os Quadrinhos:
caminhadas, evoluções e análises das HQs baianas é uma obra que mostra
caminhadas, evoluções e análises das histórias em quadrinhos baianas. Entre os
organizadores estão André Luiz Souza da Silva (Betonnasi), Claudia Cavalcanti
Cedraz e Waldomiro de Castro Santos Vergueiro. São oito ensaios sobre o
panorama das HQs na Bahia, Lazer – primeira revista em quadrinhos infantil na
Bahia, Estratégias da Industria Cultual versus leitor de quadrinhos: A ordem é
padronizar!, No ritmo da ginga: quadrinhos e capoeira na aplicação da Lei
10.639/2003, A adaptação do quadrinho para o meio digital: o advento das
webcomics, O negro cartunizado nos quadrinhos e o modelo sistemático de
elaboração de conceitos para o design de personagem, Au – o capoeirista como
experiência estético-afetiva da cidade de Salvador, e O estilo Jack Kirby de
fazer quadrinhos em Conto dos Orixás de Hugo Canuto.
No Panorama são identificados três eixos
de ações desenvolvidas pelos quadrinistas baianos: as exposições, as
associações e as publicações independentes. A década de 70 foi um período de
grandes exposições sobre o assunto. Já na década de 90 foi a do surgimento das
revistas Pau de Sebo, a Turma do Pipoca, Porreta, Esfera do Humor, Negro
D´Água, Merendinha, Tudo com Farinha, Lucas, Turma do Xaxado, O Jegue entre
outras. Na época a Associação de
Quadrinistas da Bahia unia os artistas em torno de produções e ações
eficientes. A trajetória dessa pesquisa vai até 2019.
No segundo capitulo o destaque é para o
Lazer (1977), primeira revista em quadrinhos realizada na Bahia, criação de
Cedraz e Roberio Cordeiro. No seu primeiro número contou com a colaboração de
Pericles Calafange e Dilson Midlej. Além de quadrinhos a revista trazia
diversos passatempos. Durou dois anos e incentivou as novas gerações. No capítulo
de estratégias da indústria cultural apresenta a domesticação pela indústria das
tiras em quadrinhos onde a tríade do signo capital (Estado, mercado e técnica)
engessa a linguagem dos quadrinhos. O movimento de resistência ao instituído é
uma das saídas, pois as narrativas gráficas contam diversas maneiras do viver e
as vidas são múltiplas.
No ritmo da ginga: capoeira na Lei 10.639/2003, próximo capítulo.
O pensador russo Tolstoi escreveu, sabiamente, que o poeta só é universal se
cantar a sua aldeia. Não se pode compreender a cultura de um povo sem conhecer
a sua história. Para conhecer a história de um povo, é preciso conhecer a
historia dos seus grandes homens. Aqueles que fizeram a história do seu povo e
determinaram seu destino. E o jovem Flávio Luiz resgatou esse tipo de arte que
está nas ruas, mas esquecido pelas autoridades: a capoeira. Ela ficou invisível
durante muito tempo na historiografia brasileira. Depois de dar a volta ao
mundo e alcançar reconhecimento internacional, ela se tornou patrimônio
cultural brasileiro. O registro desta manifestação foi em 2008. A criação da
Lei 10.639/03 tornou obrigatória o ensino de História e Cultura Africana e
Afro-Brasileira nas escolas de Ensino Fundamental e Médio.
Sobre webcomics (quadrinhos on-line) o
foco foi no trabalho do artista Darwiz Bagdeve que usou efeitos sonoros em um
quadrinho para criar tensão, Gabriele Brito (Gamibri) e Flavio Rangel. O negro
cartunizado mostra como a Bahia apresentou poucos personagens negros, e muitos
estereotipados. Fala sobre os movimentos (Buzios, Chibata e Malês) de autoria
do cartunista Mauricio Pestana. Considerado precursor de Lampião, o negro Lucas
da Feira foi o terror do sertão baiano durante vinte anos. A obra do roteirista
Marcelo Lima e desenho de Helcio Rogerio é um ponto positivo pois resgata
personagens invisíveis de nossa historiografia. O ensaio também aborda outros
personagens.
No último capítulo uma análise da obra do
artista Hugo Canuto que homenageia o norte americano Jack Kirby “e, ao mesmo
tempo em que o homenageia, cria; dá sua contribuição singular para a história
das histórias em quadrinhos, e convida seu leitor a participar, concretizando
Conto dos Orixás, fazendo do artístico o estético”.
Existem nos subterrâneos da Bahia muita
gente nova preocupada com soluções formais mais atualizada com a
contemporaneidade que nos marca, cultural e ideologicamente.
Por outro lado, problemas políticos
ideológicos seriam marcantes na medida de atuação cultural desses quadrinhos
como objetivos de consumo e como linguagem determinada pelo contexto cultural.
A verdadeira e boa arte gráfica é aquela que seduz pelo conhecimento que leva
ao despertar, que leva ao prazer, à consciência. Nas artes gráficas é possível
sonhar. Assim como sonhamos na poesia, na música, no cinema, no teatro e na
literatura. A arte gráfica na Bahia renova os caminhos do olhar, reinventa a
leitura, modifica a linguagem. É no lugar do desejo social que abarca a arte e
o imaginário em seu torno. Em suas formulações conteudísticas, há sempre uma
porta aberta para o social, para o poético, o político, filosófico, religioso, para
o demasiadamente humano, enfim. As artes gráficas, embora estudadas com
seriedade desde os anos 1960, ainda não foram devidamente mapeadas, enquanto
concreção ontológica, pelos próprios artistas.
E esta obra “Acredite se quiser – a Bahia faz quadrinhos!” é um ponto
forte na produção da pesquisa de nossas artes gráficas. Precisamos com urgência
mapear essas obras que são capazes de provocar, investigar, ousar, caminhar, a
passos largos sobre a nossa cultura, comportamento e entretenimento.
A matéria-prima das artes gráficas nasce
do sonho, que nasce do desejo, que nasce da paixão, que nasce de nossa mais
profunda humanidade. Por isso, nossas artes gráficas podem seduzir, ser
apaixonantes. E podem levar à reflexão.
Os autores de quadrinhos
lutam por mais apoio público para o segmento. As HQS começam a ser cada vez
mais reconhecidas pelos governos em suas três esferas, mas ainda são poucas as
ações efetivas para aumentar a promoção, a circulação e difusão dos produtos e
seus criadores. Infelizmente a Bahia ainda engatinha no assunto, mesmo tendo
sido um dos primeiros estados a defender o quadrinho com o surgimento do Clube
da Editora Juvenil publicando nos anos 70 o fanzine Na Era dos Quadrinhos.
A cultura nos traduz e nos diferencia. É
por meio dela que nos revelamos uma sociedade original, plural e tolerante.
Além disso, gera renda, trabalho e cidadania. A diversidade cultural é
considerada, ao lado da biodiversidade, uma das fontes para um novo modelo de
desenvolvimento. Chegou a hora da HQ receber um tratamento à sua altura. Um
setor tão presente na vida cotidiana, seja de criança ou adulto, tão
transversal no conjunto das dimensões humanas, tão transformador para os
indivíduos, tão vital para a economia do país e para sua relação com o mundo
merece políticas contínuas que contemplem sua grandeza.
Este foi o prefácio da obra que escrevi a
convite do professor André Betonnasi, da pesquisadora Claudia Cavalcante Cedraz
e do professor e estudioso da HQ Waldomiro Vergueiro, organizadores do livro
lançado pela Editora Criativo. Livro muito bem editado, a Criativo vem publicando
ótimas produções sobre o assunto, onde confirma que a Bahia vem produzindo
artes gráficas há muito tempo, apesar de grandes dificuldades em todo Norte e Nordeste
do país. Vale a pena conferir esta preciosidade.
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