08 julho 2021

Sim, nós temos quadrinhos! Editora Criativo lança A Bahia e os Quadrinhos:

 

Ao longo da História, sob os regimes mais obscurantistas, o crítico do lápis sempre esteve presente. Manoel Paraguassu, K-Lunga, Nicolay Tischenko e seus colegas coube o mérito de registrar sob a ópticas do humor, o período mais tumultuado da nossa história. A charge política, introduzida na imprensa, tornou-se uma tradição, por vezes interrompida por bloqueios políticos. Processado diversas vezes por políticos que se sentiam caluniados, difamados e injuriados, o desenhista tinha muitos fãs entre suas “vítimas”. No período de 1880 a 1890 a Bahia já publicava mais de 50 periódicos humorísticos de pequeno formato e curta duração

 

A arte gráfica baiana sempre esteve presente no nosso dia a dia, na mídia, nos blogs, no facebook, nos livros e revistas, nos muros da cidade como grafite. Inserido na cultura urbana de forma direta e indireta. Os quadrinhos influenciaram as pinturas de Juarez Paraíso, Floriano Teixeira, Carybé, Chico Liberato entre outros e correram o mundo. Até o poeta Castro Alves já rabiscava caricatura, assim como o maestro Lindembergue Cardoso, o cineasta Glauber Rocha, e o diretor de teatro Márcio Meirelles. Por pressão do mercado, alguns profissionais têm que pagar pela falta de opções e pela imposição da dura realidade, onde a sobrevivência fala mais alto do que a ideologia da liberdade total de criação.

 


Para os que ainda pensam que quadrinhos são produzidos no Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná, A Bahia e os Quadrinhos: caminhadas, evoluções e análises das HQs baianas é uma obra que mostra caminhadas, evoluções e análises das histórias em quadrinhos baianas. Entre os organizadores estão André Luiz Souza da Silva (Betonnasi), Claudia Cavalcanti Cedraz e Waldomiro de Castro Santos Vergueiro. São oito ensaios sobre o panorama das HQs na Bahia, Lazer – primeira revista em quadrinhos infantil na Bahia, Estratégias da Industria Cultual versus leitor de quadrinhos: A ordem é padronizar!, No ritmo da ginga: quadrinhos e capoeira na aplicação da Lei 10.639/2003, A adaptação do quadrinho para o meio digital: o advento das webcomics, O negro cartunizado nos quadrinhos e o modelo sistemático de elaboração de conceitos para o design de personagem, Au – o capoeirista como experiência estético-afetiva da cidade de Salvador, e O estilo Jack Kirby de fazer quadrinhos em Conto dos Orixás de Hugo Canuto.

 

No Panorama são identificados três eixos de ações desenvolvidas pelos quadrinistas baianos: as exposições, as associações e as publicações independentes. A década de 70 foi um período de grandes exposições sobre o assunto. Já na década de 90 foi a do surgimento das revistas Pau de Sebo, a Turma do Pipoca, Porreta, Esfera do Humor, Negro D´Água, Merendinha, Tudo com Farinha, Lucas, Turma do Xaxado, O Jegue entre outras.  Na época a Associação de Quadrinistas da Bahia unia os artistas em torno de produções e ações eficientes. A trajetória dessa pesquisa vai até 2019.

 


No segundo capitulo o destaque é para o Lazer (1977), primeira revista em quadrinhos realizada na Bahia, criação de Cedraz e Roberio Cordeiro. No seu primeiro número contou com a colaboração de Pericles Calafange e Dilson Midlej. Além de quadrinhos a revista trazia diversos passatempos. Durou dois anos e incentivou as novas gerações. No capítulo de estratégias da indústria cultural apresenta a domesticação pela indústria das tiras em quadrinhos onde a tríade do signo capital (Estado, mercado e técnica) engessa a linguagem dos quadrinhos. O movimento de resistência ao instituído é uma das saídas, pois as narrativas gráficas contam diversas maneiras do viver e as vidas são múltiplas.

 

No ritmo da ginga:  capoeira na Lei 10.639/2003, próximo capítulo. O pensador russo Tolstoi escreveu, sabiamente, que o poeta só é universal se cantar a sua aldeia. Não se pode compreender a cultura de um povo sem conhecer a sua história. Para conhecer a história de um povo, é preciso conhecer a historia dos seus grandes homens. Aqueles que fizeram a história do seu povo e determinaram seu destino. E o jovem Flávio Luiz resgatou esse tipo de arte que está nas ruas, mas esquecido pelas autoridades: a capoeira. Ela ficou invisível durante muito tempo na historiografia brasileira. Depois de dar a volta ao mundo e alcançar reconhecimento internacional, ela se tornou patrimônio cultural brasileiro. O registro desta manifestação foi em 2008. A criação da Lei 10.639/03 tornou obrigatória o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas de Ensino Fundamental e Médio.

 


Sobre webcomics (quadrinhos on-line) o foco foi no trabalho do artista Darwiz Bagdeve que usou efeitos sonoros em um quadrinho para criar tensão, Gabriele Brito (Gamibri) e Flavio Rangel. O negro cartunizado mostra como a Bahia apresentou poucos personagens negros, e muitos estereotipados. Fala sobre os movimentos (Buzios, Chibata e Malês) de autoria do cartunista Mauricio Pestana. Considerado precursor de Lampião, o negro Lucas da Feira foi o terror do sertão baiano durante vinte anos. A obra do roteirista Marcelo Lima e desenho de Helcio Rogerio é um ponto positivo pois resgata personagens invisíveis de nossa historiografia. O ensaio também aborda outros personagens.

 

No último capítulo uma análise da obra do artista Hugo Canuto que homenageia o norte americano Jack Kirby “e, ao mesmo tempo em que o homenageia, cria; dá sua contribuição singular para a história das histórias em quadrinhos, e convida seu leitor a participar, concretizando Conto dos Orixás, fazendo do artístico o estético”.

 


Existem nos subterrâneos da Bahia muita gente nova preocupada com soluções formais mais atualizada com a contemporaneidade que nos marca, cultural e ideologicamente.

 

Por outro lado, problemas políticos ideológicos seriam marcantes na medida de atuação cultural desses quadrinhos como objetivos de consumo e como linguagem determinada pelo contexto cultural. A verdadeira e boa arte gráfica é aquela que seduz pelo conhecimento que leva ao despertar, que leva ao prazer, à consciência. Nas artes gráficas é possível sonhar. Assim como sonhamos na poesia, na música, no cinema, no teatro e na literatura. A arte gráfica na Bahia renova os caminhos do olhar, reinventa a leitura, modifica a linguagem. É no lugar do desejo social que abarca a arte e o imaginário em seu torno. Em suas formulações conteudísticas, há sempre uma porta aberta para o social, para o poético, o político, filosófico, religioso, para o demasiadamente humano, enfim. As artes gráficas, embora estudadas com seriedade desde os anos 1960, ainda não foram devidamente mapeadas, enquanto concreção ontológica, pelos próprios artistas.  E esta obra “Acredite se quiser – a Bahia faz quadrinhos!” é um ponto forte na produção da pesquisa de nossas artes gráficas. Precisamos com urgência mapear essas obras que são capazes de provocar, investigar, ousar, caminhar, a passos largos sobre a nossa cultura, comportamento e entretenimento.

 

A matéria-prima das artes gráficas nasce do sonho, que nasce do desejo, que nasce da paixão, que nasce de nossa mais profunda humanidade. Por isso, nossas artes gráficas podem seduzir, ser apaixonantes. E podem levar à reflexão.

 

Os autores de quadrinhos lutam por mais apoio público para o segmento. As HQS começam a ser cada vez mais reconhecidas pelos governos em suas três esferas, mas ainda são poucas as ações efetivas para aumentar a promoção, a circulação e difusão dos produtos e seus criadores. Infelizmente a Bahia ainda engatinha no assunto, mesmo tendo sido um dos primeiros estados a defender o quadrinho com o surgimento do Clube da Editora Juvenil publicando nos anos 70 o fanzine Na Era dos Quadrinhos.

A cultura nos traduz e nos diferencia. É por meio dela que nos revelamos uma sociedade original, plural e tolerante. Além disso, gera renda, trabalho e cidadania. A diversidade cultural é considerada, ao lado da biodiversidade, uma das fontes para um novo modelo de desenvolvimento. Chegou a hora da HQ receber um tratamento à sua altura. Um setor tão presente na vida cotidiana, seja de criança ou adulto, tão transversal no conjunto das dimensões humanas, tão transformador para os indivíduos, tão vital para a economia do país e para sua relação com o mundo merece políticas contínuas que contemplem sua grandeza.

 


Este foi o prefácio da obra que escrevi a convite do professor André Betonnasi, da pesquisadora Claudia Cavalcante Cedraz e do professor e estudioso da HQ Waldomiro Vergueiro, organizadores do livro lançado pela Editora Criativo. Livro muito bem editado, a Criativo vem publicando ótimas produções sobre o assunto, onde confirma que a Bahia vem produzindo artes gráficas há muito tempo, apesar de grandes dificuldades em todo Norte e Nordeste do país. Vale a pena conferir esta preciosidade.

 

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