Quem quiser entender a Bahia de 1969 a 2006 precisa levar a sério o trabalho do cartunista Helio Roberto Lage (1946-2006) e olhar com atenção o comentário cáustico e agudo de suas charges. Mais do que jornalistas, são cronistas do desenho, que respondem diretamente aos acontecimentos com traço e legenda. De traço simples, ele conseguiu captar todo o momento histórico político vivenciado nacionalmente. Cartunzão, L´amou tuju L´amu, Tudo Bem, Brega Brasil, Ânsia de Amar mostra um humor sem retoques – autêntico e mordaz. O humor caligráfico de Lage tem uma marca pessoal muito forte e traz, por inteiro, a perplexidade nossa de cada dia.
Em 1969 começou a desenvolver charge e
tiras de humor no jornal recém fundado, Tribuna da Bahia. Na série Estorinha do
Lage começou a publicar um herói espacial, sátira ao super-herói. Ainda na tira
ele criou o papagaio Put. Nos anos 70 começou a desenhar uma página inteira de
humor no jornal O Dia, de Piauí. Durou um ano. Em seguida começou a ilustrar a
coluna esportiva de Carlos Eduardo Novaes no Jornal do Brasil. Depois veio a
serie Cartunzão, muito irreverente. Para o suplemento A Coisa criou L´amu tuju
L´amu abordando os costumes e comportamentos populares. Nos anos 80 começou
outra serie de tiras diárias, Tudo Bem onde a mulher, Kátia Regina por exemplo,
era a personagem principal, mesmo com a presença constante de Arlindo Orlando.
De 1976 a 1980 foi editor de arte da
revista Viverbahia quando começou a fazer quadrinhos coloridos. Em 1981 passou
a ser editor de arte da revista Axé Bahia e publica os quadrinhos da sensual
Dora Mulata. Em 1994 no Jornal da Pituba cria o quadrinho Pituboião,
satirizando o dia a dia da comunidade.
Segue abaixo algumas das tiras de Lage
incluídas em minha pesquisa inédita A,B,C dos personagens do quadrinho
brasileiro (De Nhô Quim, de Agostini aos Zeróis, de Ziraldo) para ser publicada
em livro:
ÂNSIA
DE AMAR
– Tira diária publicado no rodapé da página 2 do Caderno de Cultura da Tribuna da Bahia a
partir de 1993 mostrando os problemas afetivos. Aborto, traição, ciúme são
analisados nas tirinhas. Do preconceito ao amor sublime, a tira diária Ânsia de
Amar é um retrato das relações contemporâneas entre homens e mulheres. Com a
mesma sagacidade, retratada em seus cartuns, a hipocrisia social e política são
vistas nessa obra. A proposta é desmistificar o sexo e até mesmo a pornografia.
Sua fonte de trabalho: as conversas em mesas de bar, telefones públicos,
histórias contadas por amigos e ele próprio. Neste último caso, Lage
(1946-2006), o autor, aproveita para
fazer uma autocrítica. Ou seja, nem o próprio escapa.
ÂNSIA
DE MAMAR
– Publicada na Tribuna da Bahia esta série criada pelo cartunista baiano Lage
(1946-2006) nos anos 1990 desnudava de forma satírica e impiedosa as
maracutaias tramadas por um parlamentar e sua incorrigível genitora. O lápis, o
espírito crítico e o talento eram os seus materiais de trabalho. As grandes
festas do verão baiano, o sofrimento do povo e as artimanhas políticas, sua
fonte de inspiração. Rapidamente conquistou o seu mercado. Começou sua carreira
em 1967, fazendo charges para a Tribuna da Bahia, jornal onde permaneceu até
seu falecimento. Em 1997, foi eleito o melhor cartunista brasileiro pelo Troféu
HQ Mix. Treze anos depois de sua morte, é um patrimônio da cidade de Salvador.
Ele criou tipos, retratando situações, um grande cronista local. Lage
atravessou 40 anos de charges, cartuns e quadrinhos como um observador
vigilante e de fino espírito crítico. Como conseqüência, submeteu a seu olhar
os presidentes, governadores e prefeitos que administraram o País e a cidade de
Salvador durante os anos em que trabalhou em jornais e revistas.
BREGA
BRAZIL
– Série publicada na Tribuna da Bahia a partir de 1991, do cartunista baiano
Lage (1946-2006). A tira Brega Brazil satirizava os desmandos do governo
Fernando Collor de Mello (1990-1992) através de caricatos personagens. O
desenhista contava também as peripécias entre o tesoureiro Paulo César Farias,
o PC Farias e seu filho Faria Junior, um garoto de respostas rápidas e muitos dólares
na cabeça. Depois da ditadura, finalmente os brasileiros iriam escolher direta
e abertamente o seu presidente da República. A primeira eleição da Constituição
Cidadã de 1988 elegeu o desconhecido governador das Alagoas, Fernando Collor de
Mello. Ele juntou um discurso oposicionista com a moralidade administrativa e
conseguiu mobilizar a multidão. Personalista, autocrata, demagogo, conseguiu
mobilizara multidão. Ao chegar no poder congelou as contas bancárias para
conter a inflação. Não adiantou. Com a economia enfraquecida, uma turbulência
política começou a inviabilizar o governo: acusações de corrupção ficaram cada
vez mais intenso. Em vez de mandar apurar, Collor reagia atacando a oposição, o
Congresso e a mídia com diversas manifestações, passeatas e protestos, a OAB e
a ABI deram entrada no Congresso a um pedido de impeachment do presidente. Para
tentar fugir da perda dos direitos políticos, Collor renuncia à Presidência da
República. Foi o mais negro capítulo da história política do Brasil. Assim, com
o apoio das elites, o jovem alagoano vence as eleições e o palácio do governo
começava a se tornar o centro de uma vasta rede de corrupção e negociatas, na
qual projetos só andam se movidos a propina (e ainda continua hoje). Multidões
saem às ruas e o presidente sofre impeachment, mas se livra da prisão. Meses
depois ele e a esposa estavam numa ilha do Taiti. Mais tarde o casal se muda
para Miami, onde o ex-presidente nega ter a Ferrari de US$120 mil e a casa com
torneiras folheadas a ouro que estaria construindo... A suposta quadrilha
durante a era Collor em Brasília não seria a única a saquear os cofres da
nação. Em suas tiras Lage mostra o povo sem pão nem circo, reclamando de
melhorias de vida. Já não existe mais amor em Brega Brazil, o povo lá só quer
saber de sexo. Brega Brasil, para o autor, será sempre um país falido, um mero
pedaço de terra de ninguém que anos atrás foi confundida como uma pátria e
agora grande parte do povo é composta de bichos escrotos, reflexo do grande
poder escrotão. E graças ao poder corrupto, irresponsável e inconseqüente, as
coisas se deteriora em ritmo acelerado.
DORA
MULATA
– Quadrinho criado pelo cartunista baiano Lage (1946-2006) na revista
Viverbahia a partir de 1981. A sensual Dora era uma nativa da ilha de Itaparica,
na Bahia. Ela se relaciona com um gringo, um francês e um nativo. Triângulo
amoroso onde ela tinha preferência pelo francês. Foi publicada também na
revista Axé Bahia. Sua maneira objetiva de apresentar, com a simplicidade de
seu traço, os vários problemas diferentes ao ser humano, descrevendo com
capacidade, firmeza os muitos quadros públicos. O olhar “malandro” das suas
personagens, desta vez apresenta o empoderamento da mulher que começa a se
emancipar do machismo da época. Artista consciente do seu trabalho e possuidor
de um senso crítico bastante apurado, as personagens de Lage são aparentemente
simples, feitas de poucos traços que demonstram, na maioria das vezes, a
perplexidade das situações de desumanização da vida cotidiana, mas não perde a alegria
do viver, seja na orla de Salvador ou nas festas de largo.
HISTORIHA
DO LAGE
– Tira diária publicada pelo cartunista baiano Lage (1946-2006) na Tribuna da
Bahia a partir de 1969. Conta as aventuras de um herói espacial, sátira ao
super heroi. Um sujeito que vivia no futuro, mas tinha muitas coisas no
presente e passado, ambientado na Bahia. Na série ele criou o papagaio Put,
personagem irreverente.
L´AMU
TUJU L ´AMU
– Série cômica de autoria do cartunista baiano Lage (1946-2006) em 1975 no
suplemento A Coisa da Tribuna da Bahia e no independente Coisa Nostra, em 1976.
Trata-se do comportamento amoroso, o relacionamento homem/mulher. O desgaste, a
rotina e os problemas que afetam os relacionamentos são abordados no diálogo de
um casal que, na maioria das vezes, aparece no ambiente de um quarto. Lage
utiliza uma linguagem coloquial, simples, bem popular. “São textos pequenos,
mas cheios de malandragem e de erotismo característicos do povo baiano”, atesta
Hilda Guanais Fausto no seu projeto de pesquisa para análise do Curso de
Comunicação da UFBa. Talvez influenciado até pela sua vida de casado, o autor
resolveu apresentar um personagem ligado ao problema de sexo e amor. A tira
ajudou também aos leitores. Seu humor é baiano em cada traço, em cada frase e atinge
em cheio o alvo traduzindo o estado de espírito, as frustrações e os desejos de
cada um dos baianos. Humor que se mistura na multidão, nas festas de largo, que
persegue o trio elétrico, que mija a vista de todos nas ladeiras íngremes, que
passa fome na semana e vai ao estádio da Fonte Nova aos domingos. Humor
moleque, humor povo...
PITUBOIÃO – História em
quadrinhos criada por Lage (desenho) e Helcio, Ethel Viña, Cesio Roberto,
Wander Pinheiro e Renato Oliveira em 1984. A narrativa é construída em torno do
candidato a política de Salvador, Bahia, Adalberto Pituboião, sujeito
engravatado cuja cabeça não passa de um “tôloco de merda”. Ele está sempre
cabisbaixo, meditabundo, desolado e em profunda depressão. Sempre que é
possível, consulta na tenda dos milagres de Madame Ethel Vinna, mas,
aconselhado por assessores, recorre à psicanálise; E, tomando algumas
preocupações, o famoso analista Valter Setubal de Castro Lacerda aceita o caso
de Adalberto que quase iria parar numa mesa de bar para “enchera cara”, num
boteco lá na Boca do Rio. Na consulta, o psicanalista não agüentava o fedor
exalado pelo político baiano mas preocupado procura acalmar o paciente e
aconselha a rever suas alianças. Mais tarde na Câmara, diante de toda a mídia
presente, Pituboião faz seu discurso: “Neste momento solene em que todo
`covarde faz força e todo valente se caga`, quero declarar de pronto a minha
renúncia, deixando claro porém, que forças ocultas determinaram esta minha
atitude. Portanto, companheiros, sinto-me premido a abandonar esta arena de
trabalho inolvidáveis e partir saudoso...”. E Adalberto Pituboião levanta
ancoras no seu belíssimo iate `flauta de pan` com destino ao Morro de S.Paulo.
“Voltará o nosso herói às lides políticas?. Os leitores suportará tal retorno?. Aguardem”,
anuncia o letreiro final da historieta que ocupava duas páginas do Jornal da
Pituba (bairro de Salvador) que circulou em 1984 e 1985, publicação da Empresa
Jornalística Expansão. Com muito humor, além de política, a série do jornal
independente, do bairro, satirizava o dia adiada comunidade. A historieta
ocupava duas páginas do jornal criticando o quadro sucessório político, as
músicas de sucesso, os buracos de rua, a poluição do Rio Camurugipe, do
trânsito caótico e dos problemas sociais da cidade.
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