Ao longo da história ela foi muito mal
estudada. Seu nome é proibido, o cheiro é um tabu. Cientificamente ignorada por
anos, teve suas características únicas minimizadas e foi tratada como um pênis
que não deu certo — ou que estava de cabeça para baixo. Mas agora a vagina
parece finalmente estar ganhando a atenção que merece. Usando a linguagem dos
quadrinhos, com muita ironia, bom humor e uma extensa pesquisa histórica, a
quadrinista sueca Liv Strömquist reconta como a relação da humanidade com a
vagina e a vulva mudou ao longo dos tempos.
A obra A Origem do Mundo: uma história cultural da vagina ou da vulva vs. o
patriarcado (lançado originalmente em 2014) já foi traduzida para mais de dez línguas e chegou às livrarias
brasileiras pela Quadrinhos na Cia em 2018, selo de HQs da Companhia das
Letras. Deliciosamente sarcástico, mas também instrutivo e bem pesquisado e, de
uma forma arrojada, com humor afiado e usando uma personagem que conversa
diretamente com o leitor, causando interação direta e empatia, a artista fala
sobre a eterna luta das mulheres pelo
domínio do próprio corpo. O quadrinho é
praticamente um relato didático do quanto o patriarcado tentou conter, oprimir,
castrar restringir, impedir, silenciar e padronizar o sexo feminino ao longo da
história da humanidade.
O traço da autora é simples, plano e um
tanto propositadamente naïve, porém muito bem coadunado com o uso da
tipografia. É uma forma eficiente de acomodar o vasto volume de conhecimento
histórico, antropológico e cultural que ela investiga para defender sua
completa desconstrução a respeito do que se pensa sobre a vagina. Além de ser
uma das quadrinistas mais reconhecidas da Suécia, Strömquist é também cientista
política.
Lendo os quadrinhos, é possível saber
sobre sociedades antigas que adoravam vaginas e como alguns cientistas que,
segundo Liv, "que se interessaram um pouco demais por aquilo que se
costuma chamar de 'genitália feminina'" ajudaram a transformá-las em algo
vergonhoso, um assunto sobre o qual não se fala. Strömquist demonstra que
sociedades arcaicas, em sua maioria paleolíticas, depositavam outro olhar sobre
a vulva, que era central para seus imaginários culturais, associados à
espiritualidade, fertilidade e, é claro, ao nascimento humano. Isso é algo que
nossa cultura paradoxalmente prefere esquecer, talvez porque para o mundo
masculino simplesmente não seja interessante associar a origem do mundo à
sexualidade feminina. Não surpreende, portanto, que o quadro do pintor francês novecentista
Gustave Courbet (A Origm do Mundo) ainda cause escândalo. Mas esta HQ sueca
está aí para criar um novo vórtice.
A autora começa com um questionamento
instigante: por que a genitália feminina é constantemente reduzida somente à
vagina (que é apenas o orifício que liga as partes interna e externa da vulva)?
Seria uma tentativa secular de simplificar as diversas partes do órgão sexual
feminino e promover a sua invisibilidade? Um de seus argumentos mais pungentes
é pegar as imagens dos humanos enviadas pela sonda Pioneer da NASA em 1972 com
o intuito de informar civilizações alienígenas e notar que o desenho
representando a mulher não possui genitália, e sim apenas uma espécie de espaço
em branco.
A mensagem é clara: seria motivada por
certa “inveja do pênis”, ou ela sequer existiria enquanto linguagem do
inconsciente. O discurso da autora não coloca o desaparecimento da vulva apenas
como parte de um erro cultural/científico, mas também de a tentativa de
invisibilizar a vagina é a mesma de podar a autonomia sexual feminina, e logo o
sujeito feminino como um todo. Como dizem clichês de psicanálise, a mulher uma
doutrinação ideológica.
O próprio Freud é um dos que mais toma
bordoadas de Strömquist, mas sobra também para outros pensadores célebres, como
Sartre e Santo Agostinho. Eventualmente, a autora recai sobre certo anacronismo
ao querer analisar pensamentos pré-científicos ou pseudo-científicos à luz da
nossa ética e conhecimento atuais, mas a argumentação é sistemática,
persistente e provocativa.
Para a autora, a culpabilização do
prazer feminino foi um dos instrumentos mais efetivos de dominação do
patriarcado sobre as mulheres. E ela explica o porque através deste quadrinho,
necessário, esclarecedor, pontual, libertador, de uma forma crítica, sem deixar
de ser hilária. Em entrevista à Tpm, Liv conta que “a percepção negativa do
órgão sexual feminino, culturalmente tratado como repugnante ou vergonhoso,
afeta as mulheres em um nível psicológico muito profundo”. Ela também reflete
sobre menstruação, machismo e o papel dos homens em meio ao feminismo em
ebulição.
“Acho que a percepção negativa do órgão
sexual feminino, culturalmente tratado como repugnante ou vergonhoso, afeta as
mulheres em um nível psicológico muito profundo. O órgão sexual feminino é
retratado como algo fraco – "não seja uma pussy" –, enquanto o órgão
sexual masculino está constantemente ligado a conotações positivas de potência,
força, masculinidade e assim por diante. Claro que isso afeta como nos sentimos
sobre nós mesmas e limita a ideia do que podemos fazer no mundo. É um
auto-ódio, eu acho. Para mim foi importante descobrir e aprender todas as
informações que conto no livro, porque isso me fez sentir mais fortalecida e
espero que a leitora sinta o mesmo.”
Liv Strömquist, de 40 anos, nasceu em
Österlen, sul da Suécia, um país que já “percorreu um longo caminho quando se
trata de igualdade de gênero e educação sexual”, segundo ela. A cartunista é
formada em ciência política e, além dos quadrinhos,
tem um podcast chamado Conversa de verão, em que fala sobre menstruação. Já
escreveu uma peça de teatro e o roteiro de um curta sobre o cineasta Ingmar
Bergman, que foi exibido em Cannes, este ano.
Em 2017, a artista foi convidada a expor
a série The Night Garden, de desenhos de mulheres pintadas em preto e branco
com manchas vermelhas na calcinha, no metrô de Estocolmo. As ilustrações, que
se referiam à menstruação com naturalidade, provocaram críticas nas redes
sociais e duas peças foram danificadas. Liv também é autora das HQs Cem por
cento de gordura (2005), Desejo (2006), A mulher de Einstein (2008), Os
sentimentos do príncipe Charles (2010) e A cartilha da Liv (2011), ainda não
lançadas no Brasil.
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