17 setembro 2018

HQ sueca promove desconstrução da vagina


Ao longo da história ela foi muito mal estudada. Seu nome é proibido, o cheiro é um tabu. Cientificamente ignorada por anos, teve suas características únicas minimizadas e foi tratada como um pênis que não deu certo — ou que estava de cabeça para baixo. Mas agora a vagina parece finalmente estar ganhando a atenção que merece. Usando a linguagem dos quadrinhos, com muita ironia, bom humor e uma extensa pesquisa histórica, a quadrinista sueca Liv Strömquist reconta como a relação da humanidade com a vagina e a vulva mudou ao longo dos tempos.

A obra A Origem do Mundo: uma história cultural da vagina ou da vulva vs. o patriarcado (lançado originalmente em 2014) já foi traduzida para mais de dez línguas e chegou às livrarias brasileiras pela Quadrinhos na Cia em 2018, selo de HQs da Companhia das Letras. Deliciosamente sarcástico, mas também instrutivo e bem pesquisado e, de uma forma arrojada, com humor afiado e usando uma personagem que conversa diretamente com o leitor, causando interação direta e empatia, a artista fala sobre a eterna luta  das mulheres pelo domínio do próprio corpo.  O quadrinho é praticamente um relato didático do quanto o patriarcado tentou conter, oprimir, castrar restringir, impedir, silenciar e padronizar o sexo feminino ao longo da história da humanidade.

O traço da autora é simples, plano e um tanto propositadamente naïve, porém muito bem coadunado com o uso da tipografia. É uma forma eficiente de acomodar o vasto volume de conhecimento histórico, antropológico e cultural que ela investiga para defender sua completa desconstrução a respeito do que se pensa sobre a vagina. Além de ser uma das quadrinistas mais reconhecidas da Suécia, Strömquist é também cientista política.

Lendo os quadrinhos, é possível saber sobre sociedades antigas que adoravam vaginas e como alguns cientistas que, segundo Liv, "que se interessaram um pouco demais por aquilo que se costuma chamar de 'genitália feminina'" ajudaram a transformá-las em algo vergonhoso, um assunto sobre o qual não se fala. Strömquist demonstra que sociedades arcaicas, em sua maioria paleolíticas, depositavam outro olhar sobre a vulva, que era central para seus imaginários culturais, associados à espiritualidade, fertilidade e, é claro, ao nascimento humano. Isso é algo que nossa cultura paradoxalmente prefere esquecer, talvez porque para o mundo masculino simplesmente não seja interessante associar a origem do mundo à sexualidade feminina. Não surpreende, portanto, que o quadro do pintor francês novecentista Gustave Courbet (A Origm do Mundo) ainda cause escândalo. Mas esta HQ sueca está aí para criar um novo vórtice.


A autora começa com um questionamento instigante: por que a genitália feminina é constantemente reduzida somente à vagina (que é apenas o orifício que liga as partes interna e externa da vulva)? Seria uma tentativa secular de simplificar as diversas partes do órgão sexual feminino e promover a sua invisibilidade? Um de seus argumentos mais pungentes é pegar as imagens dos humanos enviadas pela sonda Pioneer da NASA em 1972 com o intuito de informar civilizações alienígenas e notar que o desenho representando a mulher não possui genitália, e sim apenas uma espécie de espaço em branco.

A mensagem é clara: seria motivada por certa “inveja do pênis”, ou ela sequer existiria enquanto linguagem do inconsciente. O discurso da autora não coloca o desaparecimento da vulva apenas como parte de um erro cultural/científico, mas também de a tentativa de invisibilizar a vagina é a mesma de podar a autonomia sexual feminina, e logo o sujeito feminino como um todo. Como dizem clichês de psicanálise, a mulher uma doutrinação ideológica.


O próprio Freud é um dos que mais toma bordoadas de Strömquist, mas sobra também para outros pensadores célebres, como Sartre e Santo Agostinho. Eventualmente, a autora recai sobre certo anacronismo ao querer analisar pensamentos pré-científicos ou pseudo-científicos à luz da nossa ética e conhecimento atuais, mas a argumentação é sistemática, persistente e provocativa.

Para a autora, a culpabilização do prazer feminino foi um dos instrumentos mais efetivos de dominação do patriarcado sobre as mulheres. E ela explica o porque através deste quadrinho, necessário, esclarecedor, pontual, libertador, de uma forma crítica, sem deixar de ser hilária. Em entrevista à Tpm, Liv conta que “a percepção negativa do órgão sexual feminino, culturalmente tratado como repugnante ou vergonhoso, afeta as mulheres em um nível psicológico muito profundo”. Ela também reflete sobre menstruação, machismo e o papel dos homens em meio ao feminismo em ebulição.


“Acho que a percepção negativa do órgão sexual feminino, culturalmente tratado como repugnante ou vergonhoso, afeta as mulheres em um nível psicológico muito profundo. O órgão sexual feminino é retratado como algo fraco – "não seja uma pussy" –, enquanto o órgão sexual masculino está constantemente ligado a conotações positivas de potência, força, masculinidade e assim por diante. Claro que isso afeta como nos sentimos sobre nós mesmas e limita a ideia do que podemos fazer no mundo. É um auto-ódio, eu acho. Para mim foi importante descobrir e aprender todas as informações que conto no livro, porque isso me fez sentir mais fortalecida e espero que a leitora sinta o mesmo.”

Liv Strömquist, de 40 anos, nasceu em Österlen, sul da Suécia, um país que já “percorreu um longo caminho quando se trata de igualdade de gênero e educação sexual”, segundo ela. A cartunista é formada em ciência política e,  além dos quadrinhos, tem um podcast chamado Conversa de verão, em que fala sobre menstruação. Já escreveu uma peça de teatro e o roteiro de um curta sobre o cineasta Ingmar Bergman, que foi exibido em Cannes, este ano.


Em 2017, a artista foi convidada a expor a série The Night Garden, de desenhos de mulheres pintadas em preto e branco com manchas vermelhas na calcinha, no metrô de Estocolmo. As ilustrações, que se referiam à menstruação com naturalidade, provocaram críticas nas redes sociais e duas peças foram danificadas. Liv também é autora das HQs Cem por cento de gordura (2005), Desejo (2006), A mulher de Einstein (2008), Os sentimentos do príncipe Charles (2010) e A cartilha da Liv (2011), ainda não lançadas no Brasil. 

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