Considerada o primeiro “novelão” dos
quadrinhos, Aninha, a Pequena Órfã (Little Orphan Annie) durou 86 anos. Soap
Opera polêmica devido às posições direitista do autor. Aninha, acompanhada de
seu cão Sandy tinha a proteção do poderoso Daddy. Era a primeira HQ a defender
uma ideologia reacionária: defesa da propriedade privada exaltando o
paternalismo dos ricos. O tom das aventuras era eminentemente dramático. Essa fórmula
agradou ao público leitor. As histórias da personagem de cabelos encaracolados
eram parábolas, contos moralistas, cheios de alegorias e caracterizações.
Aparecendo em 1924, Little Orphan Annie
(Aninha, a Pequena Órfã), a lacrimosa criação de Harold Gray (1894-1968),
talvez por personificar a mentalidade tacanha e retrógrada que dominava (e
domina ainda) boa parte da população de seu país, foi um dos grandes sucessos
dos quadrinhos, sendo desenhada por seu autor até a morte deste, em 1968, e
depois tendo sua continuação por outras mãos. Virou até musical na Broadway e
produção cinematográfica.
Com cabelos ruivos e encaracolados, Aninha
personificava a inocência da América. Seus olhos, assim como os dos demais
personagens da hq, desenhados com bolas brancas, davam-lhe um ar estranhamente
vazio; essa característica do desenho de Gray foi interpretada por muitos
críticos da época como uma liberdade dada pelo autor aos leitores, para que
estes pudessem fazer livres interpretações e associações das expressões faciais
dos personagens.
Os enredos eram manipulados pelos
editores, basta acompanharmos a trajetória de Daddy Warbucks nas histórias.
Logo que apareceu na trama era um ricaço, dono de uma indústria de armamento,
depois virou um aventureiro e, por fim, um homem de negócios internacional.
Inicialmente ranzinza e casado, teve a esposa suprimida do enredo e passou a se
dedicar, com bondade, à pequena órfã. Seu coração foi atingido pela inocência
da menina. Toda essa aparente miscelânea foi tomando forma e os sentidos
impressos nessa hq ficaram tão claros que, além de provocar críticas severas em
sua época, teóricos da área são unânimes em suas afirmações:
“As histórias eram parábolas, contos
moralistas, cheios de alegorias e caracterizações. (Moya, Álvaro, História da
história em quadrinhos. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 55)
“Gray, que sempre desenhou Aninha com
olhos brancos, foi acentuando na sua série suas convicções políticas de direita
extremada, colocando muitas vezes como ‘vilões’ sindicalistas, grevistas ou
operários simpatizantes do comunismo”. (Goidanich, Hiron Cardoso. Enciclopédia
dos quadrinhos Goida. Porto Alegre: L&PM, 1990, p. 152)
“As tiras de Little Orphan Annie são um
exemplo da introdução da ideologia de direita nos comics, paternalismo,
glorificação do mundo patronal etc”. (Biblioteca Salvat, Literatura da imagem.
Rio de Janeiro, 1980, p. 90).
“A órfã das pupilas sem luz, sempre
perseguida e sempre triunfante, é o pretexto para celebrar as pretensões, os
privilégios, os abusos de certa porção da sociedade americana: a necessidade de
ganhar muito, o gosto pelas obras de caridade, ou seja, o dinheiro, como fim e
como meio” (Buono, Oreste Del. Valentina Crepax 66-68. São Paulo, 2007, p.7).
No pós-guerra Annie falou da bomba atômica,
comunismo, rebeldia adolescente e inúmeros outros assuntos sociais e políticos,
provocando as reações de clérigos, sindicalistas e outros. Gray acreditava que
as crianças deveriam trabalhar, por exemplo. "Um pouco de trabalho nunca
machucou nenhuma criança" dizia ele. "Uma das razões da delinquência
juvenil é que os meninos são forçados pela lei a vadiarem pelas esquinas e
arrumarem encrencas". Sua crença provocou a ira do movimento trabalhista
que era a favor das leis contra o trabalho infantil.
Apesar disso, Aninha, pela forma
sentimental e positiva com que enfrentava perigos e situações difíceis,
conquistou leitores no mundo inteiro. Quanto a Aninha, seu modelo de inocência
teve sucesso. Não demorou para Annie ser adaptada a outras mídias.
Após a morte de Gray, em 1968, muitos
artistas desenharam a tira. Annie inspirou programa de rádio (1930), filmes
(adaptações em 1932, pela RKO e 1938 pela Paramount) e um musical da Broadway
em 1977 (igualmente adaptado para o cinema em 1982, 1999 e 2014). A popularidade
da tira declinou e era publicada em apenas 20 jornais quando foi cancelada em
13 de junho de 2010.
A última tira era o final de uma história
em que Annie tinha sido raptada no hotel por um criminoso de guerra do leste
europeu. Mesmo com Warbucks pedindo ajuda ao FBI e Interpol para a encontrar,
no final da tira ele já estava conformado para o fato de que Annie não
sobrevivera. Infelizmente, ele desconhecia que Annie estava viva e tinha ido
para a Guatemala com o captor, conhecido como o Açougueiro dos Balcãs que diz
não matar crianças mas que não deixara a menina ir por medo de ser preso. E que
ela terá uma nova vida com ele. O quadrinho final da faixa diz: "E aqui é
onde nós deixaremos nossa Annie. Por agora."
O estereótipo pode não ser verdadeiro, mas
é verossímil. E parte da naturalização das características encontradas no
entorno social de seu tempo. Aninha, a órfã recicla o mito da Cinderela: a
menina órfã que cai nas garras do benfeitor milionário. Surgiu num momento de
emergência dos valores burgueses, em meio à recessão americana dos anos 30.
“As histórias em quadrinhos – escreveram
Waldomiro Vergueiro e Nobuyoshi Chinem no livro Histórias em Quadrinhos e
Práticas Educativas – retratam a sociedade em que são produzidas, apresentando
e disseminando a visão ali dominante, ou seja, aquele que tem maior
possibilidade de ser bem recebida pelos leitores. Nesse processo, gêneros,
etnias e outros elementos sociais são simplificados, muitas vezes pela
utilização de estereótipos que auxiliam no processo de atingir maior
entendimento ou empatia. Ao mesmo tempo, a forma como a representação dos
diversos segmentos da sociedade é realizada nas histórias em quadrinhos não é
absolutamente estática. Ela recebe, no decorrer do tempo, influências da própria
sociedade, num mecanismo de retroalimentação saudável e necessário à
sobrevivência do meio”.
A aparente quietude das HQs esconde a
dinamicidade e a riqueza expressiva que saltam de suas páginas coloridas e
transforma esse meio de comunicação impresso em um dos produtos culturais mais
ágeis dessa indústria do espírito. E essa indústria organiza a cultura de massa
para orientar o indivíduo durante o lazer, convertendo este mesmo lazer no
tecido da vida pessoal do indivíduo.
O divertimento, inoculado no cerne do
lazer, transforma-se ao maior atrativo dos meios de comunicação de massa. As
mesmas imagens e palavras, aparentemente inócuas, que encantam crianças e
divertem adultos, escondem por trás de suas cores e traços mensagens
tremendamente eficazes que nos fazem falar, escrever, amar, vestir e nos portar
como os nossos protagonistas preferidos das histórias em quadrinhos.
Protegido pela tinta e pelo papel, os
personagens das HQs materializam representações que são constantemente
retomadas, reatualizadas e normatizadas sob a forma de um simples exercício de
leitura. E desse jogo lúdico entre palavra e imagem, retoma, recria e
fundamenta modelos e saberes.
Um comentário:
Salve Gutemberg.
Damião aqui.
Tava pesquisando sobre Corto Maltese e caí no seu prolífico blog.
Bacana, vou ficar um tempinho por aqui lendo seus textos.
Obrigado!
Grande abraço!
Postar um comentário