A canção O Que Será foi vetada pelos
censores, segundo documento confidencial do extinto Departamento Geral de
Investigações Especiais (DGIE), órgão de inteligência da Secretaria de
Segurança. Os militares acreditavam que a música era um claro exemplo de
“antagonismo à política militar” e de incentivo à “revolução para a mudança”,
porque, segundo os censores, falava de “futuro”, “custo de vida”, “liberdade” e
“política nacional”. No documento sobre a música de Chico, o então diretor do
DGIE, delegado Antônio Malfitano alerta ao serviço de inteligência do Exército
que as músicas do então “último disco” do cantor, principalmente O Que Será,
“estão sendo tocadas com insistência nos ônibus de Niterói e do Rio de Janeiro
e em rádios comerciais”. Em folha anexa, também confidencial (datada de 26 de
novembro de 1976), Malfitano reproduz a letra da música e, ao lado, suas
interpretações.
Para o delegado, o “antagonismo à política
militar” está na primeira estrofe (que andam suspirando pelas alcovas/que andam
sussurrando em versos e trovas...). Já a referência à “política nacional” está
nos versos “o que não tem decência, nem nunca terá/ o que não tem censura, nem
nunca terá/o que não faz sentido”. É na última estrofe que o diretor do DGIE
identifica o incentivo ao que chama de “revolução para mudança” (Que todos os
avisos não vão evitar/porque todos os risos vão desafiar/porque todos os sinos
irão repicar...). O delegado conclui que as três últimas frases da canção (o
que não tem governo, nem nunca terá/o que não tem vergonha, nem nunca terá/ o
que não tem juízo) são “o motivo principal para a mudança” do regime.
O amor entre mulheres está presente em
“Bárbara”, da peça Calabar (1972) e em “Mar e Lua” (1980) onde o tema é tratado
com extrema sensibilidade e delicadeza. O amor urgente, reservado, proibido,
“pois hoje é sabido/todo mundo conta/que uma andava tonta/grávida de lua/e a
outra andava nua/ávida de mar...”. Na segunda estrofe da canção fala da
exclusão social a que as duas moças foram submetidas: “E foram ficando
marcadas/Ouvindo risadas, sentindo arrepios...”. O “amor proibido” é tratado
com infinita delicadeza, sendo a atração que as duas moças reciprocamente
sentiam metaforizada através de elementos da natureza (mar e lua), também o
presumível suicídio das duas é poetizado. A crua realidade do afogamento no rio
da cidade, aquilo que seria o fim (“...e foram correnteza abaixo/rolando no
leito/engolindo água/boiando com as algas/arrastando folhas/ carregando
flores/a se desmanchar”) transforma-se, sob o signo exatamente daqueles mesmos
dois elementos aludidos: virando peixes, conchas, seixos, areia – “prateada
areia/com lua cheia/e à beira-mar”.
Em “Cala a Boca, Bárbara” (1972), uma das
mais intensas e delicadas canções eróticas da Literatura Brasileira, os
elementos da natureza metaforizam o corpo feminino, e aí se apresenta uma
mulher que é ao mesmo tempo amante e parceira de luta, a guerrilheira. Essa
canção integra a peça de teatro Calabar – em que Chico Buarque e Ruy Guerra
empreendem uma reconsideração do papel histórico dessa personagem, considerado
como o traidor por excelência, na historiografia oficial. Quando a peça se
inicia, Calabar já morto e esquartejado, executado pelos portugueses que não
apenas exigia que seu nome fosse apagado de qualquer registro onde pudesse
figurar, como também proibia que seu nome fosse pronunciado. Mas restou sua
mulher, Bárbara, que é quem canta a canção, e quem ele está intensamente
presente. Ela nunca o chama, nessa canção, pelo nome: Calabar é o ele a que se
refere. No entanto, é esse nome que se forma, com espantosa nitidez, como uma
constelação, à força da repetição quase obsessiva do refrão: “Cala a boca
Bárbara: CALABAR”. O nome de Calabar contém o nome de Bárbara: prisão de
amantes apaixonados:
“Ele sabe dos caminhos
Dessa minha terra
No meu corpo se escondeu
Minhas matas percorreu,
Os meus rios,
Os meus braços
Ele é o meu guerreiro
Nos colchões de terra
Nas bandeiras, bons lençóis
Nas trincheiras, quantos ais, ai
Cala a boca,
Olha o fogo,
Cala a boca,
Olha a relva,
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Cala a boca, Bárbara
Ele sabe dos segredos
Que ninguém ensina:
Onde guardo o meu prazer
Em que pântanos beber,
As vazantes,
As correntes,
Nos colchões de ferro
Ele é o meu parceiro
Nas campanhas, nos currais
Nas estranhas, quantos ais, ai
Cala a boca,
Olha a noite,
Cala a boca,
Olha o frio
Cala a boca, Bárbara....”.
É um poema em que o corpo feminino se
sobrepõe a imagens da terra: rios, matas, vazantes, enchentes, selva, pântanos.
Cada um desses termos pode ser submetido a uma dupla leitura, no registro
paisagístico, e no registro erótico. Reagrupados de uma outra maneira (de um
lado, matas, selva; de outro, pântanos, correntes vazantes), eles evocam toda
uma geografia simbólica do corpo feminino, marcam inequívocas referências (por
alusão e/ou analogia) ao sexo da mulher: pêlos, fenda e fonte de umidade.
Referências:
BLANNING, Tim. O Triunfo da Música: a
ascensão dos compositores, dos músicos e de sua arte. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
FAOUR, Rodrigo. História sexual da MPB: a
evolução do amor e do sexo na canção brasileira. Rio de Janeiro: Record, 2006.
GOFFMAN, Ken & Dan Joy. Contracultura
através dos tempos: do mito de Prometeu à cultura digital. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2007.
HOLLANDA, Chico Buarque de. Literatura
Comentada. Seleção de textos, notas, estudo biográfico, histórico e crítico,
exercícios por Adélia Bezerra de Meneses Boll. São Paulo: Abril Educação, 1980.
JULIANO, Carolina. Esses moços, pobres
moços. Fim de Semana. Eu& nº79. Valor. São Paulo: 1,2,3 e 4/11/2001.
MENESES, Adélia Bezerra de. Figura do
Feminino na Canção de Chico Buarque. São Paulo: Ateliê e Boitempo Editorial,
2000.
MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho
Mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial (2ª
edição), 2000.
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