Todos nós sabemos que narrativas são
instrumentos poderosos. Histórias são capazes de dar sentido à nossa existência
e de nos remeter a algo que pode transcendê-la. O mitologista e escritor Joseph
Campbell (1904-1987) já nos mostrou que a humanidade conta a mesma história
desde que existe, que é o ciclo heroico ou monomito. Sempre a mesma história e
não obstante sempre diferente. E por que? Porque narrativas são como vírus. Elas
nos habitam e se reproduzem em nós e somente em nós podem se desenvolver
completamente.
Esmagados por legislações racistas,
desprezados em todos os atos da vida cotidiana, excluídos dos estabelecimentos
brancos, os negros precisariam, para sobreviver espiritualmente, redefinir uma
cultura que lhes fosse própria: o blues. E a influência do blues foi
determinante na música branca do Sul dos EUA, mesmo na country music,
considerada a expressão musical dos sulistas brancos.
As grandes cidades do Norte extremamente
prósperas foram acolhedoras para os negros. A segregação instalada nos estados
do Sul e eram mais violentas. Ameaçar, separar, sub-educar, para conter: eis um
racismo colonial nessa região. E os mais extremistas agrupados em associações
secretas como a Ku Klux Klan ou Cavaleiros do Branco Camélia veio com toda a
ferocidade negando qualquer direito aos negros.
Todo mundo conhece bem o poder do rio.
Houve uma grande cheia do Mississipi em 1927. A pequena cidade de Chatterlee
sofreu a catastrófica enchente fluvial na história dos EUA. Foram 250 mortes. A
tragédia foi a precursora da mudança. Enquanto o rio transbordava, tensões
raciais e sociais cortavam a cidade por dentro. A obra de J.G.Jones e Mark Waid
explora o lugar da questão racial nos quadrinhos.
A justiça sulista acobertava muitos crimes
contra os negros, tanto que assassinatos ficavam frequentemente impunes, uma
vez que o branco era considerado quase sempre a vítima. Para retratar o horror
sentido ao ver uma foto do linchamento de dois negros, que tiveram seus corpos
pendurados nos galhos de uma árvore, o professor e poeta Abel Meeropol (um
judeu) escreveu o poema Bitter Fruit (Fruto Amargo), sob o pseudônimo de Lewis
Allan, publicando-o em 1936, depois mudando o nome para Strange Fruit (Fruto
Estranho). “Das árvores do Sul pendem frutas estranhas”. O poema chamou a
atenção de Billie Holiday que acrescentou a canção a seu repertório. Muitas
estações de rádio recusaram a tocá-la. E até hoje não costuma ser tocada.
Strange Fruit foi lançada há 80 anos (1939).
Lançada em abril de 2018 pela Editora
Mythos, o álbum em quadrinhos "Fruto Estranho" traz a história pelas
mãos do aclamado roteirista Mark Waid. A narrativa se passa no sul dos EUA,
anos 20. À beira de enfrentar uma enchente avassaladora, uma pequena comunidade
se une para tentar conte-la. Ânimos aflorados e traumas escondidos vem à tona
durante esta crise na forma de um profundo e violento racismo. Arte hiper-realista
de J.G. Jones. O nome "Fruto Estranho" vem do fato de que no sul dos
EUA, era comum negros serem enforcados e ficarem durante dias pendurados nas
árvores como se fossem estranhos frutos.
O que decepciona é o roteiro que não
convence ao colocar um deus que literalmente cai do firmamento para resolver o
problema da enchente e logo depois desaparece. O Deus de ébano forasteiro deve
ser uma homenagem ao personagem Ícone, geração de Dwayne McDuffie (1962-2011),
um quadrinista que produzia HQ para minorias étnicas nos EUA.
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