28 junho 2019

Racismo em quadrinhos na ótica de Fruto Estranho


Todos nós sabemos que narrativas são instrumentos poderosos. Histórias são capazes de dar sentido à nossa existência e de nos remeter a algo que pode transcendê-la. O mitologista e escritor Joseph Campbell (1904-1987) já nos mostrou que a humanidade conta a mesma história desde que existe, que é o ciclo heroico ou monomito. Sempre a mesma história e não obstante sempre diferente. E por que? Porque narrativas são como vírus. Elas nos habitam e se reproduzem em nós e somente em nós podem se desenvolver completamente.

Esmagados por legislações racistas, desprezados em todos os atos da vida cotidiana, excluídos dos estabelecimentos brancos, os negros precisariam, para sobreviver espiritualmente, redefinir uma cultura que lhes fosse própria: o blues. E a influência do blues foi determinante na música branca do Sul dos EUA, mesmo na country music, considerada a expressão musical dos sulistas brancos.

As grandes cidades do Norte extremamente prósperas foram acolhedoras para os negros. A segregação instalada nos estados do Sul e eram mais violentas. Ameaçar, separar, sub-educar, para conter: eis um racismo colonial nessa região. E os mais extremistas agrupados em associações secretas como a Ku Klux Klan ou Cavaleiros do Branco Camélia veio com toda a ferocidade negando qualquer direito aos negros.

Todo mundo conhece bem o poder do rio. Houve uma grande cheia do Mississipi em 1927. A pequena cidade de Chatterlee sofreu a catastrófica enchente fluvial na história dos EUA. Foram 250 mortes. A tragédia foi a precursora da mudança. Enquanto o rio transbordava, tensões raciais e sociais cortavam a cidade por dentro. A obra de J.G.Jones e Mark Waid explora o lugar da questão racial nos quadrinhos.


A justiça sulista acobertava muitos crimes contra os negros, tanto que assassinatos ficavam frequentemente impunes, uma vez que o branco era considerado quase sempre a vítima. Para retratar o horror sentido ao ver uma foto do linchamento de dois negros, que tiveram seus corpos pendurados nos galhos de uma árvore, o professor e poeta Abel Meeropol (um judeu) escreveu o poema Bitter Fruit (Fruto Amargo), sob o pseudônimo de Lewis Allan, publicando-o em 1936, depois mudando o nome para Strange Fruit (Fruto Estranho). “Das árvores do Sul pendem frutas estranhas”. O poema chamou a atenção de Billie Holiday que acrescentou a canção a seu repertório. Muitas estações de rádio recusaram a tocá-la. E até hoje não costuma ser tocada. Strange Fruit foi lançada há 80 anos (1939).

Lançada em abril de 2018 pela Editora Mythos, o álbum em quadrinhos "Fruto Estranho" traz a história pelas mãos do aclamado roteirista Mark Waid. A narrativa se passa no sul dos EUA, anos 20. À beira de enfrentar uma enchente avassaladora, uma pequena comunidade se une para tentar conte-la. Ânimos aflorados e traumas escondidos vem à tona durante esta crise na forma de um profundo e violento racismo. Arte hiper-realista de J.G. Jones. O nome "Fruto Estranho" vem do fato de que no sul dos EUA, era comum negros serem enforcados e ficarem durante dias pendurados nas árvores como se fossem estranhos frutos.

O que decepciona é o roteiro que não convence ao colocar um deus que literalmente cai do firmamento para resolver o problema da enchente e logo depois desaparece. O Deus de ébano forasteiro deve ser uma homenagem ao personagem Ícone, geração de Dwayne McDuffie (1962-2011), um quadrinista que produzia HQ para minorias étnicas nos EUA.


 

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