17 março 2008

Um sentimento antigo chamado ciúme

O ciúme já foi tema de uma série de obras-primas da cultura brasileira. Para o compositor Lupicínio Rodrigues, nem “pessoas de nervos de aço, sem sangue nas veias e sem coração” estão isentas. O exemplo maior quando se fala em ciúme é Otelo. Levado para a ópera por Verdi e transportado para o cinema por Zeffirelli, o protagonista da tragédia de Shakespeare estrangula a inocente Desdêmona, instigado pelas insinuações maldosas de Iago, para depois enterrar um punhal no próprio peito e morrer beijando os lábios frios da esposa morta. Em sua obra “Em Busca do Tempo Perdido”, Marcel Proust tratou com tamanha dimensão esse sentimento que assalta o interior de quem ama, ou se esforça para amar. O livro é um grande tratado de etiqueta amorosa a partir da distorção do comportamento do ciúme. No imaginário de Proust, para se ter uma relação plena é preciso preencher todos os estágios do tempo que a outra pessoa ocupou. O ciúme seria inevitável, porque sempre haveria áreas inalcançáveis. O ciúme foi sempre um grande tema para as artes e letras. Na literatura brasileira, temos um verdadeiro tratado do ciúme no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Sentimento tão antigo quanto a humanidade, o ciúme tem a curiosa propriedade de fazer as pessoas verem coisas que não existem. E, algumas vezes, de esconder o que está claro para todos. Embora não livre a cara de ninguém, o ciúme costuma contaminar principalmente quem ainda não passou dos 18 anos. É uma fase em que todas as emoções são muito intensas. O medo de perder o ser amado ou de ser rejeitado toma proporções fantasmagóricas. E entre os adolescentes, o maior número de ciumento está entre os que estão apenas paquerando, de rolo ou começando a namorar, ficar na linguagem deles. Para os psicólogos, o ciúme é mais provável nas relações instáveis mas, todos sentem ciúme. Na verdade o estranho é alguém não ter ciúme nenhum. O ciúme na medida certa ajuda a temperar o amor, mas o exagero torna difícil a convivência. Em psicanálise, há diversas formas de ciúme. Nos neuróticos o ciúme é motivado pela incerteza e, nos psicóticos, pela certeza.

Na primeira estrofe do D.Juan, de Molière, está escrito: “O amor começa pelo ciúme”. Quem pretende não ser ciumento, está mentindo ou não ama. O ciúme é um sentimento doloroso que afeta não somente o casal, mas também os angustiados e até as crianças. O ser humano sendo racional, está sujeito a reações emocionais que escapam ao seu controle consciente. O ciúme é um fator importante em toda relação afetiva, pois está diretamente ligado ao sentimento do amor e serve de equilíbrio no relacionamento entre duas pessoas.

A relação amorosa cria laços únicos, talvez os mais intensos que somos capazes de formar. Os sentimentos gerados pelo ciúme são tão primitivos que muitas vezes nos arrastam a atitudes completamente fora do nosso padrão de comportamento. Muitas vezes, ter ciúme é querer e, geralmente, é disposição para lutar pelo próprio amor. “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?. Ter loucura por uma mulher. E depois encontrar esse amor, meu senhor. Nos braços de um outro qualquer”. Lupicínio Rodrigues não sabia o que trazia no peito: se era ciúme, despeito, amizade ou horror. “Eu só sei – diz ele – é que quando a vejo, me dá um desejo de morte ou de dor”.

Em outro momento da música popular brasileira, o compositor Chico Buarque revela em seu “Olhos nos Olhos”: “Quando você me deixou meu bem. Me disse pra eu ser feliz, e passar bem. Quis morrer de ciúmes. Quase enlouqueci. Mas depois como era de costume, obedeci. Quando você me quiser rever. Já vai me encontrar refeita, pode crer. Olhos nos olhos....”. Já Alceu Valença diz que o ciúme é a véspera do fracasso, e o fracasso provoca o desamor no “Romance da Bela Inês”. Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Motta descrevem “A Maça” assim: “Quando eu te escolhi para morar junto de mim. Quis ser tua alma, ter seu corpo, tudo enfim. Mas compreendi que além de dois existem mais. Amor só dura em liberdade, o ciúme é só vaidade. Sofro mas eu vou te libertar...”. “Quando o ciúme passa, tempestade já levou tudo. E o amor já virou uma caça, que se esconde pra não morrer”. É assim que Carlinhos Vergueiro e Novelli descrevem o “Ciúme”, uma tempestade. Em ritmo de bolero, Ednardo canta “Lupiscínica”, de Petrúcio Maia e Augusto Fontes. Na letra, “hoje sinto ciúmes até da tua falta. Mas não vou mais matar ninguém por tua causa. Mata-me que eu já te matei”.

“Ciúme expressão dolorida, das mil incertezas da vida. Julgar que outro alguém se interpõe e que tudo acabou entre os dois”. O vozeirão empostado, sem disfarce, que tão bem marcou o curso de toda a sua longa carreira: Francisco Alves interpreta “Ciúme”, tango de Jacob Gade, versão de Osvaldo Santiago. “Eu quero levar uma vida moderninha. Deixar minha menininha sair sozinha. Não ser machista e não bancar o possessivo. Ser mais seguro e não ser tão impulsivo. Mas eu me mordo de ciúme”, dispara Roger Moreira, o líder do grupo Ultraje a Rigor, sucesso nos anos 80. Caetano Veloso, Rita Lee, Roberto Carlos, Zizi Possi e tantos outros já cantaram o ciúme na MPB. O ciúme consegue desarticular o ego adulto e fortalecer os aspectos infantis que contém. Exatamente por isso é tão terrível: por sua capacidade de nos transformar em crianças assustadas, chorando pelos cantos, flagelando-nos destrutivamente, ameaçadas e sem controle. E o pior é que, ao sofrimento causado pelo ciúme, acrescentamos a vergonha e a culpa por sermos ciumentos. Melhor seria, em vez de castigarmos nossa vulnerabilidade, tratar de nós mesmos com a paciência e carinho que dispensamos aos amigos. Em vez de ficaremos horrorizados com nossos sentimentos, tentar entendê-los e aceitá-los.

2 comentários:

Vítor Hugo Silva disse...

muito bom!

para mim, a obra mais marcante sobre esse assunto é Dom Casmurro.

Gutemberg disse...

Dom Casmurro é uma obra prima.