10 dezembro 2007

Uma invenção poética do homem: a palavra

“Uma palavra morre
Quando falada
Alguém dizia.
Eu digo que ela nasce
Exatamente
Nesse dia”.

Com este curto poema a poetisa oitocentista Emily Dickinson atravessou o espaço e o tempo, pois o mistério da palavra é o mistério do pensamento, por ser aquela a sua expressão física. O pensamento cruza o espaço e o tempo e pode sobreviver, como espírito, como chama. A singular sensibilidade da grande artista transcendeu a brevidade de sua vida e alcançou lugar de destaque no mundo das letras. Já se disse que vivemos num oceano de palavras (Stuart Chase), mas assim como um peixe na água não temos consciência disso. É preciso, no entanto, que saibamos utilizar bem as palavras porque elas não custam nada, mas podem nos ajudar a obter muito.

“Metade das palavras que usamos não tem nenhum significado, e da outra metade cada homem entende cada palavra segundo os moldes de seu próprio capricho e imaginação”, escreveu o polonês Joseph Conrad para seu amigo Cunninghame Graham. O romancista Conrad percebeu na linguagem a fraqueza das palavras e da realidade que exprimem. Ele tinha plena consciência das limitações da língua. E uma das grandes conquistas de Conrad foi usar as palavras de modo a revelar as fraquezas que elas próprias encerram. Ainda mais notável, aprendeu a fazê-lo numa língua (inglês) que não era a sua. “O Agente Secreto” é um de seus melhores romances.

“A palavra, primeira invenção poética do homem – dizia Victor Chklóvski, crítico de literatura e de artes plásticas, contemporâneo de Maiakovski. As palavras haviam perdido sua forma poética para se reduzir à expressão utilitária que permite a comunicação direta, era preciso ressuscitá-la. A imagem do cinema seria um meio de ressuscitar a palavra, e a palavra ressuscitada, um meio de reinventar a imagem cinematográfica. Para Chklóvski a literatura do começo do século XX imitava o cinema para preparar a ressurreição da palavra, instante em que, ultrapassado o posto pelo naturalismo, menos preocupada em descrever cenas e paisagens, a literatura passasse a se dedicar por inteiro ao material que lhe era próprio, a palavra; nos poemas futuristas, mais desenhados que escritos na página, palavra para ser vista como imagem, Chklóvski identifica um exemplo da influência da fotografia e o cinema; diz que as imagens nos ensinam a tirar o objeto da cadeia natural do dia-a-dia para transformá-lo num objeto artístico – o cinema, desse modo, apropriando-se das coisas assim como Marcel Duchamp estava fazendo com seus Ready-Made”.

O texto acima está no livro do crítico, ensaísta e professor José Carlos Avellar (O Chão da Palavra – cinema e literatura no Brasil. Rocco) diz mais: Na década de 20, Mikhail Bakhtin acrescenta – A palavra, ela mesma, deve ser vista como uma expressão em movimento. Quem fala não vai buscar a palavra num dicionário, pega a palavra em conversas do cotidiano. Mas quem escreve, dirá mais tarde Pasolini, sim, vai ao dicionário buscar a palavra como um objeto guardado num cofre, para utiliza-la de modo particular e adiante devolve-la ao dicionário acrescida deste seu novo sentido. E quem escreve poesia, acrescenta Manoel de Barros, reescreve o dicionário: trabalha como quem lava roupa no tanque, dando porrada nas palavras, errando a língua, porque as palavras em estado de dicionário não trazem poesia em si.

Toda palavra traz a marca de uma profissão, de um gênero, de uma corrente, partido, indivíduo, geração ou época. Toda palavra, sim é uma semente – diz o pai em ”Lavoura Arcaica”, o livro de Radrian Nassar (1975) e o filme de Luiz Fernando Carvalho (2001) – entre as coisas humanas que podem nos assombrar, vem a força do vento em primeiro lugar; precede o uso das mãos, está no fundamento de toda prática. Toda palavra é alterada quando salta de um grupo social para outro, de uma época para outra. Algumas resistem à mudança e, mesmo quando tomadas por um outro grupo ou época, continuam a serviço do contexto em que foram criadas. Não uma expressão neutra, um sistema normativo de formas abstratas, mas uma opinião concreta e contraditória sobre o mundo, toda palavra é uma semente, traz vida, energia, e pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos, diz o filho em Lavoura Arcaica.

Todas as coisas têm nome? Se têm, como podem os homens guardar tantas palavras? Como podem conviver com os perigos da palavra? A questão que Graciliano Ramos desenha em “Vidas Secas” através das dúvidas de dois meninos. O mais velho de sinhá Vitória gostava da palavra inferno, assim como Macabea, a nordestina de “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, gostava da palavra parafuso. E o crítico José Carlos Avellar revela: “Ao passar os olhos pela literatura (eureka!), o cinema descobriu que a imagem não é a flor da pele: é também texto. Ele não ilustra o que pensamos com palavras: ele pensa de outra maneira”.

O livro de Avellar seduz o leitor ao estabelecer um histórico flerte entre cinema e literatura, feito de aproximações, espelhamentos, parcerias, desafios, negações, afastamentos e reconciliações. A idéia do cinema tão logo se concretizou na tela iluminou a literatura. Renovou a escrita, estimulou a invenção de novas histórias e de novos modos de narrar que, por sua vez, adiante, iluminaram a escrita cinematográfica, estimularam que ela se fizesse assim como se faz, em constante reinvenção.

Um comentário:

Luciana disse...

Adorei essa pintura do casal. Quem é o pintor??