05 dezembro 2007

Sertão/mar

“O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. A profecia atribuída a Antônio Conselheiro e popularizada na música “Sobradinho”, de Sá e Guarabira, já se materializou. Em Sobradinho, a barragem cumpriu a profecia. O mar virou sertão. A estiagem fez reaparecer ruínas da antiga cidade baiana de Remanso, inundada pelo reservatório no final dos anos 70, e alterou a vida de famílias nômades que se mudam de acordo com a vazão do Rio São Francisco.

“O homem chega já desfaz a natureza
Tira gente põe represa, diz que tudo vai mudar
O São Francisco lá pra cima da Bahia
Diz que dia menos dia, vai subir bem devagar
E passo a passo, vai cumprindo a profecia
Do beato que dizia que o sertão ia alagar
O sertão vai virar mar
Dói no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
O sertão vai virar mar
Dói no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Adeus Remanso, Casanova, Sentisé
Adeus Pilão Arcado veio o rio te engolir
Debaixo d'água lá se vai a vida inteira
Por cima da cachoeira, o Gaiola vai subir
Vai ter barragem no Satu do Sobradinho
O povo vai se embora com medo de se afogar
O sertão vai virar mar
Dói no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Vai virar mar
Dói no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Adeus Remanso, Casanova, Sentisé
Adeus Pilão Arcado veio o rio te engolir
Debaixo d'água lá se vai a vida inteira
Por cima da cachoeira, o Gaiola vai subir
Vai ter barragem no Satu do Sobradinho
O povo vai se embora com medo de se afogar
O sertão vai virar mar
Dói no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Vai virar mar
Dói no coração
O medo que algum dia
O mar também vire sertão
Remanso, Casanova, Sentisé
Pilão Arcado, Sobradinho, adeus, adeus
Remanso, Casanova, Sentisé
Sobradinho, adeus, adeus
Remanso, Casanova, Sentisé
Sobradinho, adeus, adeus”.

O relatório da ONU sobre mudanças climáticas concluiu que o aquecimento global provocará, num futuro próximo, dentre tantos danos, a transformação do sertão nordestino em deserto. O documento, resultado de uma semana de debates entre 400 especialistas de mais de 100 países sobre 28 mil dados científicos copilados de todo o planeta, foi amenizado por cientistas de nações altamente poluentes, como Estados Unidos, China e Rússia. O futuro pode ser bem mais cinzento. Como no mundo tudo se interliga, há uma interdependência de sistemas e biomas, o derretimento das geleiras nas montanhas e nos pólos faz os oceanos subirem, ameaçando a vulnerável costa nordestina. Cidades litorâneas à margem do Rio São Francisco, mas próxima do Atlântico — poderão simplesmente desaparecer, numa previsão mais sombria. Pequenos países-ilhas do Pacífico já estão sofrendo esse tipo de ameaça.

Subindo, o mar avança sobre os leitos dos rios. No São Francisco, onde essa pressão oceânica já é perceptível, a água salgada poderia facilmente chegar à área de captação de adutoras, como a que abastece Aracaju e que é responsável por mais de 50% da água doce que chega às torneiras da capital. Uma equação de difícil solução: mais calor e menos água potável. Os cientistas concluíram que mais de 1 bilhão de pessoas poderão sofrer com a falta de água em um futuro próximo. E, como a corda sempre arrebenta do lado mais fraco, as populações mais pobres do mundo serão as mais afetadas pelo aquecimento global. Passando de zona semi-árida a zona árida, no Nordeste as conseqüências dessa mudança afetarão a alimentação, sanidade e saúde da população local. Resultado da falta de água potável, má alimentação e sanidade precária ou inexistente, uma simples diarréia.

“O sertão vai virar mar, dói no coração, o medo que algum dia o mar também vire sertão”, diz a canção popular. Na Bahia, a previsão já virou realidade. A Chapada Diamantina, região que fica no centro geográfico da Bahia e faz o divisor de águas das bacias dos rios de Contas, Paraguaçu e São Francisco, já foi mar há milênios. Hoje é um paraíso encravado no sertão baiano.

O povo, cujas crenças e medos se abastecem numa cultura universal, que recua milênios no tempo, tem razão para temer. Afinal, o mar já virou sertão uma vez, porque o sertão não poderia virar mar? Quando os dinossauros dominavam a Terra, há 100 milhões de anos, o norte do Brasil era uma região de mares rasos, cheios de peixes, onde enormes répteis voadores, os pterossauros, voavam em círculos, mergulhando nas ondas em busca da pescaria farta. Esses mares secaram quando a Terra esfriou, e o nível dos oceanos recuou. Hoje os corpos fossilizados daqueles peixes e répteis voadores são retirados da formação Santana, na Paraíba, e vendidos como “souvenir” para os turistas.

O oposto já aconteceu, e regiões costeiras foram engolidas pela fúria do oceano. Todo mundo conhece a história da Atlântida, o continente que afundou no mar, narrada por Platão no Timeu. Os atlantes eram um povo belo e orgulhoso, donos de uma cultura e uma civilização sofisticada. Mas cometeram o erro de tentar extrair energia do fundo dos oceanos, perturbando o reinado de Posseidon. E o deus dos mares se ergueu com seu tridente, e o maremoto engoliu Atlântida, seus palácios e seu povo altivo, numa única noite. Uma lenda? Nem tanto. Pesquisas no mar Mediterrâneo mostram sinais de uma catástrofe que destruiu inúmeros portos e cidades costeiras da Grécia Antiga, dando origem à lenda da Atlântida.
“A seca seca a terra,
seca a gente,
seca a vida.
Seca a morte que tem sede de viver
para matar a sorte de quem subvive
brincando de sobreviver.
Nefastos coronéis sugam suor e sangue
dessa gente que nem sabe assinar o nome,
dessa gente que morre de fome
para alimentar a gula do poder.
O nordeste?..
O nordeste é um latifúndio

onde latem fundo as desigualdades,
onde a miséria dita as ordens
e o analfabetismo é seu feitor,
na democracia do chicote
o cabresto marca o X do eleitor
para escolher seu carrasco e sua dor,
esse feudo fede a morte:
é o corpo faminto
que cai indigente
em meio a lavoura que o tempo secou,
é o vômito arrogante
do coronel prepotente
que se autodeificou.
É o descaso
que leva ao ocaso
um povo escravo da dor
é a dor que alimenta a morte
que mata a vida, assassinando a sorte.
Mas o nordestino é forte!
Faz de esperança o seu farnel.
Pega seu pau de arara,
vai pedir a "Padin Ciço"

que traga à terra um pouco de céu.
Canta e reza,
para espantar seus males,
quebrar maus olhares,
pedir água a Deus.
Lembra o Mestre Vitalino
que com a beleza de um menino
fez no barro o caxixi.
E o capitão Virgulino
que do cangaço foi ladino
foi um mito,
foi um rei.
De canudos ecoou um grito!
Era o profeta conselheiro
dizendo ao povo brasileiro:
"o sertão vai virar mar",
quando a seca deixar de ser
um objeto no mercado da política,
quando a miséria não mais alimentar o poder,
quando o desmando enfartar o peito do coronelismo,
quando o analfabetismo calar e o povo disser não,
quando o chicote quebrar,
quando o cabresto partir...
o sertão vai virar mar". (Sertão mar, de Antonio Pereira-Apon)


O sertão não está em nossa volta, mas também dentro da gente, nunca deixando de ser, um grande sertão. E na topografia do sertão, dominam os tabuleiros, as chapadas que se prolongam em chapadões, a encostas onde a unidade já se pressente, é o resfriado, e a parte baixa é a vereda, o caminho estreito, trilha que pode ter sido o curso fluvial pequeno, um rio que corre para o mar. E quem olha para o mar pode constatar que ele não se repete, suas ondas vão e vem, vão e vem, vão e vem e assim para sempre. Basta olhar, há diferença na repetição, nunca uma onda é igual a outra. O real não está nem no mar nem no sertão. O caminho que traçamos para chegar até ele e no caminho por que voltamos para contá-lo. O real está na travessia. O sertão está em toda parte. O sertão é obra de arte. O sertão é marte. O sertão é arte. O sertão é tão, tão, tão.

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